Cultura
Natal: esperança equilibrista
No calendário litúrgico cristão, estamos na época do Advento, tempo de espera até que nasça o menino Deus. Se usarmos nossa imaginação, podemos visualizar a jovem Maria, numa Palestina empoeirada, já com uma barriga enorme, percebendo com certa ansiedade que teria que sair de perto […]


No calendário litúrgico cristão, estamos na época do Advento, tempo de espera até que nasça o menino Deus. Se usarmos nossa imaginação, podemos visualizar a jovem Maria, numa Palestina empoeirada, já com uma barriga enorme, percebendo com certa ansiedade que teria que sair de perto da sua família e amigos para fazer o recenseamento ordenado por César Augusto e como mulher colonizada, ela não tinha opção de não obedecer aos dominadores.
No entanto, essa bela história tem conexões com nosso presente e tem muito a nos inspirar. Nas últimas semanas fui impactada por duas obras de arte da produção cultural brasileira: o filme “Ainda estou aqui” e a série “Betinho: no fio da navalha” sobre a vida do sociólogo e ativista Herbert de Souza, conhecido nacionalmente como Betinho. Ambas tratam de um mesmo período da nossa história, a ditadura civil-militar que teima em se manter viva ainda hoje em nosso país.
No filme, a perseverança da Eunice Paiva, viúva do o ex-deputado federal Rubens Paiva, impressiona pois sua luta pela memória, pela verdade e pela justiça é comovente. A esperança de que teria alguma forma de reparação pelo assassinato político de seu marido, a fez insistir por 25 anos até que finalmente pudesse obter o atestado de óbito de seu companheiro. Ainda assim, ela não viu a justiça ser feita de maneira completa, sem anistia para os impetradores dos crimes e demais envolvidos naquele regime.
Da mesma forma, o Betinho também pode ser citado como figura pública que manteve viva no seu coração a esperança de ver o Brasil sair do mapa da fome. Voltou do exílio em 1979 e dedicou-se integralmente a essa causa, inaugurou em 1993 a Ação da Cidadania. Até sua morte em 1997 a esperança guiou sua incidência pública na intenção de ver nossa população não ser mais vitimada pela insegurança alimentar. Ainda assim, o Brasil só saiu do mapa da fome em 2014 e ele nem viu isso acontecer.
Ainda não podemos dizer, em 2024, que superamos esse absurdo, uma das muitas contradições do capitalismo neoliberal, que faz com que um país que é produtor e exportador de alimentos tenha uma parcela enorme da população rural e urbana em situação de insegurança alimentar. O que quero dizer é que Eunice e Betinho viram, após muita luta, apenas PARTE de seus sonhos acontecerem e mesmo assim mantiveram a teimosia em esperançar, assim como Maria, mãe de Jesus.
No texto da Anunciação, também conhecido como Magnificat, Maria em sua resposta ao anúncio do anjo é absolutamente incomum. Qual jovem camponesa, moradora de uma região empobrecida da Palestina devido a exploração imperial romana, diria palavras de dura crítica social ao receber a notícia de que está grávida? Sejamos honestos: ninguém faz análise de conjuntura política, não só da época em que vive, mas resgatando a história de seus antepassados, num momento em que socialmente se espera felicidade e não preocupação com o contexto sócio econômico.
Maria subverte quando traz um olhar analítico da história de seu povo e de suas condições materiais onde tem gente privilegiada e gente que passa fome e a comunidade que registrou o texto quis que se soubesse que ela, ao saber do menino que viria, tinha em mente as opressões compartilhadas há séculos. Maria desejava justiça! A esperança dessa jovem mulher, assim como a de tantas outras jovens Palestinas hoje em meio a guerra absurda, é que através daquela criança, “os poderosos sejam derrubados de seus tronos e os humildes sejam exaltados.”
O sonho de Maria é que de alguma maneira Deus, através das pessoas, movimente a história para que os famintos tenham o que comer e que os ricos saiam de mãos vazias. Por isso que ela nesse texto do Evangelho de Lucas nos ensina sobre reparação histórica, consciência de classe e também sobre direito à memória e à justiça. No coração de Maria, assim como Elis Regina cantou, tinha uma “esperança equilibrista”, que andava na corda bamba da história mas não desistia porque os processos necessários para a transformação da sociedade num lugar mais fraterno, são lentos. Mas não duvide: eles acontecem! Muito embora o poder do capitalismo pareça invencível, todas as estruturas socialmente construídas podem ser questionadas e refeitas.
A força das idéias é inegável. Mudanças podem começar pelas boas palavras e o que se pode perceber na narrativa do Natal é que Maria nos deixou como legado a esperança. Esperança que sabe que mudanças estruturais não acontecem do dia pra noite, utopia que enfrentará reviravoltas de rumo na história, será pisoteada até quase desistir, será desacreditada, mal interpretada, quase soterrada pelas areias do tempo mas insistirá. Para os que acreditam no Menino-Deus a esperança está naquele pequenino ser que não teve lugar para nascer com dignidade e que por isso mesmo, sem romantização alguma, foi parido entre os animais, no campo, perto da terra, debaixo das estrelas, tendo por testemunha gente muito simples.
Na cena do primeiro Natal tem singeleza mas tem também subversão. Acima de tudo, tem a crítica pertinente de um mundo que se tornou perverso, faminto, cheio de desigualdades. Maria, como protagonista, estava atenta às necessidades reais de sua gente assim como Eunice Paiva, Betinho, Elis Regina e tantos outros personagens unidos pela esperança equilibrista.
“Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar
Azar
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar”
Esse texto tem a intenção de te estimular a continuar, a esperançar em coletividade para que dessa forma o menino que vai nascer. a força da vida que sempre vence, nos faça olhar para além de nós mesmos e nos ajude a encontrar caminhos de construção de uma sociedade melhor para todo mundo. Feliz Natal.
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