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Na favela, o trenó do Papai Noel passa reto

Um dia ouvi de uma criança branca: ‘criança que não come não ganha presente’. Por muitos anos vivi incomodado com a ‘piada’

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Eu não acreditava em Papai Noel, não dava tempo. Era tanta coisa urgente pra família resolver, que a prioridade era ter comida na mesa. Outras ilusões não me apeteciam. Meu Natal inesquecível foi aquele em que arroz e um frango de padaria (ganhado) era tudo que tinha (triste mesmo, pois sempre odiei comer sem feijão). Presentes, festa, árvore enfeitada, nada disso faz parte das minhas lembranças.

Um ano ou outro era melhor. Tinha peru, panetone, maionese, pudim. Se passasse direto, sem recuperação na escola, o sonho de uma bicicleta ou um Atari poderia se realizar. As patroas mandavam as roupas que já não serviam, um brinquedinho barato, uma garrafa de sidra. E a gente sentava pra esperar, não o Papai Noel, mas a hora de comer.

Acho que eu gostaria de ter acreditado no bom velhinho (algumas realidades são duras demais pra uma criança, mas não dava tempo). Depois da noite de Natal, tinha que sair logo cedo: ver os presentes que os filhos dos vizinhos ganhavam e recolher as garrafas de champanhe, que a gente trocava por pirulitos e pintinhos (criar galinhas era a chance de ter uma mistura de vez em quando).

As diversões da rua, as brincadeiras de moleque: esconde-esconde, pega-pega. Éramos ensinados a acreditar que não precisávamos de muito. Só que outro mundo invadia nossa casa. A TV alimentava nossas fantasias: o tênis, a bike, a Disney. Eu sonhava, queria ser rico um dia. No fundo, queria a mesa farta da novela, a árvore de Natal, o café da manhã da Xuxa.

Havia realidades bem mais duras que a nossa. Sempre tive essa consciência. Era uma casa pobre, eram muitas dificuldades, mas era uma família. Não era um barraco, não era um cortiço. Tinha pai, mãe, tias, primas. Tinha minha avó, que trabalhou como empregada doméstica até seu último instante de vida. Tinha arroz e feijão quase todos os dias. No Natal, porém, a gente esperava mais, e nem sempre era possível.

No presépio, o Menino Jesus, tão loirinho, já me dava a noção das diferenças. Num final de ano, na pré-escola, as professoras montaram uma peça sobre o nascimento de Cristo. Uma ideia original para aquele final de década de 1970, com uma mistura de raças e cores e a transmissão de uma mensagem de união entre os povos. Representei José, o pai de Jesus. Muitos aplausos, mas uma professora que chorava copiosamente me chamou a atenção. Ela me deu um presente: um caminhão de plástico enorme, um embrulho que fez meu olho brilhar. O choro dela foi pelo comentário de uma mãe: “que absurdo, o único preto dessa história tinha que ser o rei mago”. Soube disso anos depois, mas doeu como se fosse no dia.

Lembro que na época as imagens das crianças africanas maltratadas pela fome corriam o mundo. A gente cantava “We are the world” e começava a perceber que depois do ruim existia o pior. A gente ainda tinha que agradecer por tão pouco.

A cada Natal, uma expectativa: como será este ano? Vai ter presente? Vai ter pernil? Numa dessas ocasiões ganhamos roupas novas e fomos pra rua exibir. No meio da molecada tinha preto, tinha branco, japonês, boliviano. Um menino que morava no sobrado, branco e bem de vida (pelo menos a gente achava) veio contar entusiasmado a “piada” que ouvira do pai:

“Diz que o Papai Noel estava sobrevoando todos os continentes de trenó e jogando presentes pra todas as crianças. Jogou um monte de presente na Europa, na Ásia, nos Estados Unidos. Quando chegou na África, as criancinhas, alegres, começaram a pular e gritar: ‘Papai Noel! Papai Noel!’ Ele olhou e foi embora dizendo: ‘criança que não come não ganha presente’.”

A “piada” me incomodou por anos, talvez por que a tivesse entendido de imediato. O Natal era triste, era chato, era escuro. E devo dizer que assumir uma religião afro-brasileira, não cristã, me libertou dessa comemoração.

 

Ao tornar-se branco, europeu, Jesus incorporou outros valores e passou a representar uma instituição e seus interesses. De lá pra cá, tudo piorou. Cristãos que se esqueceram dos ensinamentos de Cristo seguem implementando um projeto de poder fundamentalista, cada vez mais sectário, intolerante, racista e desrespeitoso. Não existe amor. Nem sei se um dia existiu.

A religião que mais cresce no Brasil é também a religião com o maior contingente negro. Por isso, há quem reivindique, inclusive em alguns movimentos mais estruturados, a negritude de Jesus Cristo. Lamento informar, mas Jesus é branco. Do ponto de vista político e ideológico, Jesus é branco. Aliás, considerando a construção da categoria negro, é fácil concluir que Cristo sempre foi branco.

O bom velhinho também é (embora o gosto pelo exótico e as jogadas do marketing estejam levando ao shopping certo povo descolado pra tirar foto com o Papai Noel preto). As armadilhas da sociedade de consumo engabelam com perfeição, mas na favela o trenó passa reto.

De quem é a responsabilidade pela pobreza? Os que se arvoram em posar como cidadãos de bem saem pelas ruas distribuindo sopão e marmitex (às vezes, apenas aos que fingem se converter). Sobre as favelas do Rio de Janeiro e do Brasil, o Cristo, de braços abertos, se faz redentor, mas segue explorando a miséria deste povo que vive a cada dia uma esperança: a de que o Natal do ano que vem há de ser melhor.

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