Diálogos da Fé

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Mulheres, aborto e outros paradoxos de um ano eleitoral

Embora não tenham o direito de decidir o que fazer com seus próprios corpos, as mulheres têm nas mãos o poder de mudar os rumos do País

Brasileiras se uniram em apoio à legalização na Argentina, mas Senado do país vizinho rejeitou proposta
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Elas já constituem mais da metade do eleitorado brasileiro, mas, a exemplo do contingente negro, ainda se enquadram no conceito de minoria e têm muita dificuldade em se constituir enquanto grupo ou classe social e se tornar, de fato, agentes capazes de interferir no processo histórico.

Não acredito que seja mera coincidência um debate sobre a descriminalização do aborto neste ano eleitoral marcado pela polarização, que, desde o pleito de 2014, transformou o Brasil numa arena em que se digladiam forças extremamente reacionárias e movimentos progressistas.

De um lado, grupos que querem manter o status quo das elites e defender interesses de bancadas que fecham com o agronegócio, a indústria bélica e o projeto de um Estado cristão evangélico. De outro, os movimentos sociais, as minorias, os mais pobres, todos ressentidos com o golpe que derrubou a presidenta Dilma, perseguiu e prendeu o ex-presidente Lula e vem submetendo trabalhadores a perdas de direitos, desemprego e falta de investimentos em serviços básicos, como educação e saúde.

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Nesse cenário começam as discussões sobre o aborto. As igrejas cristãs e seus líderes evocam suas convicções religiosas e dogmas para vociferar contra aquilo que consideram “um crime, um atentado à vida”. Essas lideranças desconsideram que a maioria das mulheres que abortam pertence exatamente a suas fileiras e que há movimentos organizados entre suas próprias fiéis pelo direito de decidir e a favor da legalização.

Pesquisadoras de diversas áreas estão participando do debate, trazendo dados, estatísticas, argumentos que demonstram, entre outras coisas, quem são as verdadeiras vítimas não só do aborto, mas principalmente de sua criminalização.

As mulheres que se arriscam na clandestinidade, que morrem com procedimentos invasivos ou por falta de assistência quando procuram o SUS, que são ameaçadas de prisão ao se submeter à curetagem, que sofrem toda sorte de violência física e psíquica quando se veem diante dessa decisão tão difícil.

Mulheres pobres e negras, em sua esmagadora maioria. Mulheres que não podem pagar pelo serviço de uma clínica especializada (sim, essas clínicas existem). Mulheres que acabam recorrendo a métodos arriscados que, com um pouco de sorte, podem chegar a bom termo quando se deparam com médicos e enfermeiras que cumpram os procedimentos sem maiores questionamentos ou constrangimentos, embora saibam exatamente do que se trata.

Talos de mamonas, agulhas de tricô, a mangueirinha do chuveiro, sondas e até o cabo de uma rosa. Sem contar os remédios, muitos falsificados, vendidos a preços absurdos por atravessadores. Os chás e beberagens e até alguns “acidentes” provocados para resolver o “problema”.

Não, senhores, nenhuma mulher se submete a esses procedimentos por gosto ou vontade, nenhuma mulher recorreria ao aborto como método anticonceptivo, nenhuma mulher em sã consciência colocaria a própria vida em risco por capricho ou vaidade. A decisão por um aborto vem sempre acompanhada de dor e desespero. Não é simples, não é fácil e as sequelas são sempre profundas.

Uma batalha ferrenha será travada até que se alcance a descriminalização ou, como me parece ideal, a legalização. Não basta que o aborto deixe de ser considerado um crime, sua prática deve ser legalizada e regulamentada para que nenhuma mulher morra por falta de assistência ou cuidados nem seja submetida a constrangimentos por vezes mais violentos que o próprio ato.

Paradoxalmente, vivemos um ano eleitoral no qual as principais chapas que concorrem à Presidência da República têm mulheres como candidatas a vice. Nesse caso, esquerda e direita buscam fisgar uma parcela do eleitorado que pode definir o resultado. Até o candidato ultramachista, que acha que mulher deve ganhar menos exatamente porque engravida, tentou emplacar uma delas como parceira na disputa.

Os aspectos misóginos do golpe contra Dilma Rousseff, a primeira presidenta eleita de nossa História, demonstram o quanto as questões do feminismo, além de pouco difundidas, são pouco compreendidas em nossa sociedade. Não sejamos ingênuos, a presença de mulheres como candidatas a vice sinaliza uma preocupação com o voto feminino, nada mais.

As pautas femininas pouco avançam e as feministas, menos ainda. Se acrescentarmos o fator racial, tudo fica ainda mais complicado. Agora, para que a estrutura da sociedade se altere, principalmente em ralação às inúmeras injustiças sofridas pelas minorias, é preciso que as questões reivindicadas pelas mulheres, especialmente pelas mulheres negras, sejam contempladas e, no caso da disputa, assumidas como compromissos de governo.

Quem se dispõe? Quem ousa contrariar interesses das bancadas conservadoras? É muito provável que tenhamos uma mulher como vice-presidente, mas devemos nos lembrar que já tivemos uma mulher presidente e isso não foi suficiente para evitar que uma agenda reacionária, que vilipendiou inclusive direitos básicos das mulheres e de todo povo brasileiro, fosse posta em prática, destituindo um governo eleito democraticamente.

Mulheres, negros, indígenas, LGBTs devem estar representados em todas as esferas de poder. No executivo, mas também no legislativo e no judiciário. Contudo, de nada adianta que pessoas oriundas de minorias sociais não estejam engajadas e comprometidas com as garantias de direito dessas populações.

Considerando que voltamos vinte anos em dois, as discussões sobre aborto devem sinalizar os rumos do País nos próximos anos e sentenciar de que lado está o Supremo Tribunal Federal no debate sobre direitos e garantias fundamentais.

O aborto é um crime. Um crime contra as mulheres mais pobres, contra mulheres negras e indígenas que não têm assegurado o mais elementar de todos os direitos: o direito à vida. Legalizar o aborto é uma necessidade diante das violências que essas mulheres sofrem e do risco a que se submetem ao recorrer à clandestinidade como solução para as mazelas sociais que as tem condenado ao abandono e ao mais profundo desprezo. Estão condenadas sem uma apreciação justa, que ouça e considere suas razões, que compreenda e ajude a sanar seu desespero.

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