Quando Ana Maria Ramos Estevão foi presa, em junho de 1970, ela era membro da Igreja Metodista em Vila Nova Cachoeirinha, São Paulo, tinha sido aluna de Teologia do Instituto Metodista (escola de diaconisas da igreja) e líder de jovens metodistas. Por conta do que aprendeu da fé cristã, atuou em oposição à ditadura militar. Foi julgada e absolvida, mas carrega as marcas da tortura que sofreu durante 15 dias:
“Fiquei nua no pau de arara, levei choque na vagina. Recebi muita ameaça de que iriam me estuprar, não chegaram a cumprir. Os primeiros três dias foram mais fortes. Nos outros dias, a gente ouvia os gritos, as ameaças… você vê o chão todo sujo de sangue… nos amordaçavam para não gritarmos quando levávamos o choque. Levei vários tapas no rosto. O capitão Gaeta depois foi lá embaixo na minha cela dizer que tinha batido na gente porque a gente estava tendo ataque histérico. Ainda vinha se justificar. ‘Vocês não eram tão quentes assim na esquerda? Mesmo assim a gente teve que ser violento, porque tendo ataque histérico, começava a gritar’. E isso foi o que mais me ofendeu… claro… ser pendurada, ser obrigada a ficar nua, levar choque na vagina, tudo isto é muito humilhante, mas dizer que foi porque a gente tinha uma crise histérica, é uma coisa para te ofender como mulher”.
Já Leonildo Silveira Campos, quando foi preso em 1969, era seminarista da Igreja Presbiteriana Independente. Ficou 15 dias nas dependências da Operação Bandeirantes (Oban) e no DOPS, em São Paulo. Solto por falta de provas (ele, de fato, não atuava como militante e foi preso injustamente), foi tachado de subversivo e perdeu o emprego em um banco. Ele não esquece do pastor batista Roberto Pontuschka, capelão do Exército que à noite torturava os presos e de dia visitava celas distribuindo o “Novo Testamento”.
“Um dia bateram na cela: ‘Quem é o seminarista que está aqui?’ De terno e gravata, ele se apresentou como capelão e disse que trazia uma ‘Bíblia’ para eu ler para os comunistas f.d.p. e tentar converter alguém. O capelão chegou a ser questionado por um encarcerado se não tinha vergonha de torturar e tentar evangelizar. Como resposta, o pastor batista afirmou, apontando para uma pistola debaixo do paletó: ‘Para os que desejam se converter, eu tenho a palavra de Deus. Para quem não quiser, há outras alternativas’”
Estes depoimentos estão contidos entre outros no livro As Igrejas Evangélicas na Ditadura Militar: dos abusos de poder à resistência cristã, publicado pela Editora Alameda, lançado nesta última semana de setembro.
O livro foi organizado pelo Coletivo Memória e Utopia e oferece conteúdo que aprofunda o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, publicado em 2014. As autoras e os autores, que atuaram como pesquisadores do Grupo de Trabalho O Papel das Igrejas na Ditadura Militar, da CNV, reuniram para a obra uma diversidade de materiais. Lançaram mão daqueles que não foram utilizados no relatório e foram colocados à disposição no Arquivo Nacional, e de novos dados não considerados à época, seja por falta de tempo (a CNV tinha um mandato com prazo de encerramento), seja por terem sido desenvolvidos em novas pesquisas desde 2014.
Memória e Utopia preparou ainda uma apresentação didática das listas de vítimas evangélicas da ditadura que foram perseguidas dentro das igrejas e pela repressão do Estado e dos líderes e fiéis que colaboraram com o regime. Foi também adicionado um pequeno glossário para contribuir com a compreensão de termos relacionados aos contextos das igrejas e da ditadura.
A publicação contou com o apoio de organizações que atuam na defesa de direitos humanos: a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), Koinonia Presença Ecumênica e Serviço e o Instituto Vladimir Herzog. Este apoio foi fundamental para que a obra fosse distribuída de forma gratuita neste setembro, por meio de uma tiragem impressa e de uma versão online que pode ser baixada aqui. Lançamentos com eventos no Rio e em São Paulo nas próximas semanas vão dar o acesso aos impressos a quem participar.
Este conteúdo é colocado à disposição de leitores e leitoras em um momento crucial para a história do Cristianismo no Brasil. O recente alinhamento de boa parcela dos evangélicos a grupos políticos de extrema-direita, unidos no que se tem denominado “bolsonarismo”, dada a chegada ao poder de um dos seus líderes, demanda uma atenção responsável à compreensão não só do presente mas da memória histórica deste grupo religioso.
A adesão ultraconservadora, fundamentalista e violenta às políticas de morte, de negação de direitos, de manutenção de privilégios e da desigualdade, da parte de lideranças de corporações religiosas e de igrejas menores têm gerado muitos questionamentos. Ao mesmo tempo, a oposição de uma minoria progressista, identificada com esquerdas políticas e movimentos sociais progressistas, e a perseguição decorrente dela tem sido realidade.
Todos estes elementos precisam ser compreendidos à luz da memória da relação das igrejas evangélicas no Brasil com os autoritarismos. O livro, que agora chega a quem se interessa pela relação entre religiões e política e/ou atua pela defesa da democracia, é importante registro da história recente que explica muito das origens destas ações díspares que marcam a realidade controversa das igrejas evangélicas no Brasil.
Há quem negue este tempo de trevas e até defenda que ele seja retomado. É a composição da verdadeira “roda de escarnecedores”, como registram passagens da Bíblia, inclusive a narrativa sobre os executores de Jesus.
A memória da ditadura militar é oportunidade de afirmar as atrocidades praticadas pelo Estado no passado para cuidar do presente e do futuro. Afinal, a perversidade dos autoritarismos se mantém viva, com feridas abertas, não curadas, nas execuções de desafetos e opositores, nas ações policiais arbitrárias, nas torturas em delegacias e prisões, no aparelhamento de instituições para perseguir e calar, nos ataques e intimidações que ainda ganham lugar em igrejas.
Como insistiam o arcebispo católico D. Paulo Evaristo Arns e o pastor da Igreja Presbiteriana Unida Jaime Wright, quando enfrentaram juntos a perversidade da tortura: “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça!”
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