Diálogos da Fé

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Projeto do Pastor Isidório para restringir o uso da palavra ‘Bíblia’ fere o estado laico

A utilização de termos e de símbolos religiosos está no escopo do que se denomina ‘liberdade de expressão’

Foto: Câmara dos Deputados
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Nos últimos dias, fomos surpreendidos com o destaque no noticiário para mais um projeto de lei que estreita a relação entre política e religião de forma controversa. O PL é o 2/2019, de autoria do deputado federal Sargento Isidório (Avante/BA), “proíbe o uso o nome e/ou título BÍBLIA ou BÍBLIA SAGRADA em qualquer publicação impressa e/ou eletrônica com conteúdo (livros, capítulos e versículos) diferente do já consagrado há milênios pelas diversas religiões Cristãs (Católicas, Evangélicas e outras que se orientam por este Livro – Bíblia)”.

O alvoroço se deu pela apresentação de um requerimento que solicitava tramitação do PL em caráter de urgência (votação do mérito da proposta sem que ela passe pelas comissões), que chegou à ordem do dia da Câmara Federal, em 10 de março passado. No entanto, a sessão foi encerrada sem que o requerimento fosse analisado e votado. O projeto foi encaminhado para a Comissão de Cultura, ainda não instalada, para posterior parecer de relator a ser indicado.

A busca de urgência também chamou atenção por ter ocorrido na mesma semana em que o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), reuniu-se com pastores evangélicos apoiadores. Em campanha para a reeleição, o presidente prometeu que “dirige o país para o lado que eles quiserem”. 

O PL 2/2019 prevê que quem faça uso das palavras “Bíblia” e “Bíblia Sagrada” de forma indevida deve ser punido por crime de estelionato. A justificativa é, segundo o deputado Pastor Isidório, uma “polêmica do livro em edição que se especula chamar bíblia gay”, o que ele denomina “absurdo”, pois haveria indícios de que “tal livro pretende tirar as referências que condenam o homossexualismo”. 

O deputado baiano registra no texto que a publicação de uma “Bíblia Gay” seria “uma verdadeira heresia e total desrespeito às autoridades eclesiásticas” e uma “violência contra os 92% de cristãos brasileiros”. A justificativa segue afirmando que a permissão para tal publicação abriria “precedente para que haja um livro corporativista com nome (apelidado) bíblia gay ou de nomenclatura similar, em pouco tempo surgirá também outros livros apelidados de bíblia para outros segmentos de pecadores, a exemplo: homicidas, adúlteros, prostitutos, mentirosos etc. Ou seja, livros chamados de bíblia para livrar todo tipo de pecadores”.

Manoel Isidório de Santana Junior já era sargento da Polícia Militar da Bahia quando se converteu à Assembleia de Deus nos anos 1990. Ganhou notoriedade como um dos líderes da destacada greve da PM na Bahia, em 2001. Tornou-se político, passou por seis partidos (PT, PSC, PSB, PROS, PDT, Avante), concorreu, sem sucesso, a prefeituras (incluindo Salvador), mas conseguiu ser eleito como deputado estadual (três vezes) e como federal, em 2018.

Desde sua primeira eleição como deputado estadual, o Pastor Isidório passou a ser conhecido por suas posturas “folclóricas” (performances no parlamento), e por controvérsias como acusações de imposição de castigos corporais a dependentes químicos em um de seus projetos assistenciais e declarações e propostas de teor homofóbico. O deputado se declara ex-homossexual. 

O caso do PL 2/2019 tem vários elementos a serem considerados como mais uma controvérsia para o currículo do deputado. Em primeiro lugar, é nítido que o PL fere o Estado laico. Não é papel de um Parlamento, em uma democracia que é laica, legislar sobre formas de uso de palavras e de símbolos de determinada religião. 

Já existe, no Brasil, um parágrafo da Constituição, o 5º, que rege toda a legislação e garante a liberdade de religião e de culto, e que todas as pessoas sejam respeitadas e tratadas de maneira igual perante a lei, independentemente da orientação religiosa. É papel de um Estado laico enfrentar a intolerância religiosa, caracterizada pela violência e pela perseguição por motivo religioso na forma de ofensa, discriminação e até mesmo por atos que atentam à vida. 

O uso de palavras e de símbolos religiosos está no escopo do que se denomina “liberdade de expressão”. Não se pode impedir que pessoas e grupos os utilizem ou mencionem, pois pode caracterizar censura, incabível em um estado democrático de direito. O que deve ser impedido, em relação a símbolos e rituais, é o crime caracterizado como “vilipêndio”, já previsto no Código Penal, no artigo 208: “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar [desrespeitar, ultrajar, menosprezar] publicamente ato ou objeto de culto religioso”. A pena é de um mês a um ano de detenção ou multa. Nada disso diz respeito ou está contido na justificativa do PL 2/2019.

Em segundo lugar está a dimensão subjetiva da justificativa do projeto. O parlamentar afirma que não se pode usar os termos Bíblia ou Bíblia Sagrada, em publicação com conteúdo “diferente do já consagrado há milênios pelas diversas religiões cristãs”. Qual seria o conteúdo consagrado há milênios em relação à Bíblia? Consagrado por quem? 

Se fizermos essas perguntas para as diversas confissões cristãs, igrejas e seus líderes, de distintas doutrinas e escolas teológicas, teremos inúmeras respostas diferentes. Afinal, foram as variadas formas de leitura e de interpretação dos escritos da Bíblia que geraram, por milênios, as diferentes igrejas, confissões e denominações cristãs (incluindo a do Pastor Isidório!), e, dentro delas, diversas correntes teológicas que convivem em meio a muitas tensões conceituais.  

Dentro do tema há, ainda, a questão da própria formação da Bíblia. Há diferentes tradições na organização das próprias escrituras, tanto que há uma versão da Bíblia adotada pela Igreja Católica Romana, há uma outra tomada pelas igrejas evangélicas e outras assumidas pelas igrejas cristãs ortodoxas e as outras orientais. 

E mais: há também que se considerar os debates em torno das múltiplas versões da Bíblia e suas traduções diversas. O antigo dito italiano “traduttore-traditore”, ou “tradutor é traidor”, é citado por vários estudiosos e analistas quando se referem à forma como as diferentes traduções do hebraico e do grego, línguas originais dos escritos bíblicos, estão cheias de armadilhas ideológicas quando da seleção das palavras em tradução, que nem sempre são fiéis à cultura que está por trás da língua original, nem da época e local em que os textos foram produzidos. 

Por isso, há uma extensa lista de versões das Bíblias com traduções diferentes, que levam em conta esses elementos históricos, geográficos e culturais e também traduções que buscam facilitar a compreensão e atrair leitores, como a Bíblia na Linguagem de Hoje. Há também as Bíblias confessionais, com as versões ou com as anotações produzidas por líderes das diferentes tradições como a Bíblia de Lutero, a Bíblia de John Wesley, a Bíblia de Genebra, a Bíblia MacArthur, entre muitas outras.

O mercado editorial também opera na produção de Bíblias segmentadas para atrair consumidores, como a Bíblia da Mulher, da Mamãe, do Papai, Kids, do Jovem, do Surfista, da Prosperidade, do Pregador Pentecostal, entre outras. 

Certamente, o deputado Pastor Isidório não considera essa pluralidade de perspectivas que são derivadas e geram leituras e interpretações das mais diversas e, por vezes, contraditórias. Isso porque a proposição dele está ancorada em uma dimensão fundamentalista, aquela que é baseada em dogmas que performam a imposição de um pensamento único em torno da Bíblia e também de uma visão excludente de mundo. 

É característico do fundamentalismo evangélico, desde o início do século 20, o mote da “defesa da fé e da própria Bíblia”. Nesse sentido, condena-se as compreensões e interpretações plurais, contextualizadas, e se dá prioridade a uma leitura literal e fria. Observa-se, no entanto, que esta leitura, na prática, não é literal, mas seletiva. A Bíblia é utilizada para justificar preceitos e ideologias assentadas por determinada tendência religiosa.

Fundamentalistas abominam as correntes teológicas identitárias, como a negra, a feminista, a LGBTI+/queer, que oferecem noções e interpretações da Bíblia com o olhar de minorias sociais historicamente oprimidas pela leitura masculina, branca, heteronormativa. Essas compreensões contemporâneas têm proporcionado uma nova relação de pessoas negras, de mulheres, de LGBTI+ com os textos sagrados, que se revela amorosa e libertadora.

Daí a iniciativa que o deputado baiano chama de “Bíblia gay”. Ela é, na verdade, mais uma das tantas versões da Bíblia, elaborada por um grupo de ativistas LGBTI+ dos Estados Unidos, a Queen James Bible, à venda em famosa livraria virtual desde 2017.  O título parafraseia a King James Bible, uma das versões mais tradicionais da Bíblia em língua inglesa. Segundo o organizador da obra, identificado pelo pseudônimo Queer James, a tradução busca ser fiel aos originais em hebraico e grego, e não reproduz palavras que, em oito trechos, foram ideologicamente utilizadas por tradutores ao longo da história, para condenar a homoafetividade.

A Queen James Bible já ganhou muitos debates e contestações, o que é legítimo em termos da pluralidade de visões que circundam a Bíblia, e da liberdade de expressão e de opinião, que é um direito humano. No entanto, aqui no Brasil, um discordante da iniciativa, o deputado Pastor Isidório, quer usar uma instituição do Estado, que é laico e, portanto, não deve se posicionar ou interferir em questões doutrinárias referentes a qualquer religião, para exercer censura. Ele quer proibir, não só a existência da obra, como de qualquer outra que se chame Bíblia que não reproduza a leitura que ele, e determinado grupo que ele alega representar, defende.

Além de autoritária, a justificativa do PL tem conotação fortemente homofóbica, o que deve ser obrigatoriamente avaliado por qualquer comissão da Câmara que analise o documento. 

O PL é o retrato da presença religiosa que predomina na política institucional brasileira: que nega e atua para criminalizar a diversidade, busca impor um pensamento e uma interpretação únicos da fé cristã e apela para a defesa de uma suposta maioria da qual seria representante. São tempos difíceis para a democracia que exigem atenção, reflexão, inconformismo e resistência.

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