Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

Fé e vida em meio à pandemia da Covid-19

‘Infelizmente, no Brasil, não tivemos por parte daqueles que deveriam ter adotado todas as medidas necessárias’

Foto: iStock
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“Felizes os pobres no Espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Felizes os que choram, porque serão consolidados. Felizes os mansos, porque herdarão a terra. Felizes os que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados. Felizes os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia. Felizes os puros de coração, porque verão a Deus. Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus.
Felizes os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. Felizes vocês, quando por minha causa os insultarem, perseguirem e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vocês. Fiquem contentes e alegres, pois grande é a recompensa de vocês nos céus. Porque foi assim que perseguiram os profetas que vieram antes de vocês”. (Mt 5, 3-12)

Ao refletirmos sobre a mensagem das Bem-Aventuranças proclamadas por Jesus em seu “Sermão da Montanha”, inferimos, num primeiro momento, tratar-se da composição um anúncio de felicidade. Num segundo momento, podemos deduzir, que ao mesmo tempo e principalmente, são uma convocatória para o não-conformismo e para a ação. A existência de pobres e aflitos amplamente registrada no texto de Mateus, é uma clara mostra de que é preciso ter sede e fome de justiça de Deus. Os pobres que não se conformam com a situação em que se encontram e aceitam a convocação de Jesus são os “pobres no Espírito”, sintonizados com o que o Espírito de Deus lhes inspira.

E, no terceiro momento entendemos, que a prática da misericórdia, a luta pela verdadeira paz da fraternidade, mostram a justiça de Deus sendo assumida por quem escuta o desafio apresentado por Jesus. Esse caminho de vida, porém, traz como consequência a perseguição, produzida por aqueles que desejam a coisas continuando como estão.

Vamos agora, trazer esta mensagem de Jesus para nossos dias, quando estamos vivendo uma tragédia jamais vista em solo brasileiro. Tragédia esta, causado por uma pandemia mundial que atingiu milhões de pessoas em todo o mundo.

Pelos meios de comunicação éramos alertados sobre o perigo que este vírus representava e orientados para adotar medidas que pudessem evitar –ou pelo menos minimizar-, os danos por ele causados. Assistimos, então, governos de inúmeros países empreendendo medidas e ações com o objetivo de proteger suas populações. A princípio, tais medidas pareciam para alguns, radicais demais ou até mesmo desnecessárias. Tomados por uma prepotência totalmente descabida e irresponsável, certos governantes e seus asseclas decidiram se opor às orientações de órgão internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS), chegando ao ponto de escarnecerem das medidas por eles sugeridas e dos alertas sobre o perigo mortal que todos nós estávamos sujeitos. Infelizmente, neste contexto estava inserido o Brasil.

Há exatamente um ano, tivemos o primeiro caso de Covid 19 registrado em nosso país. Desde então, nos vimos envoltos pelo terror de estarmos sujeitos, todos nós, ao contágio por uma doença desconhecida que se espalhava de diversos modos. Primeiras medidas de contenção indicadas por médicos, cientistas e pesquisadores de diversas áreas: isolamento social, uso de máscara e de álcool gel para higienização.

Verdadeiros estadistas responsáveis pelo bem-estar da população consideraram, obviamente, os danos econômicos que a pandemia poderia causar. Contudo, colocaram em primeiro plano o bem maior de todo ser humano: a vida. Entenderam que não cabia, sob hipótese alguma, qualquer tipo de debate ou confronto ideológico-partidário que pudesse prejudicar ainda mais a população.

Em meio ao possível pânico entre as pessoas causado pela falta de recursos para sobreviverem, medidas econômicas foram adotadas visando garantir a subsistência das famílias disponibilizando um auxilio emergencial capaz de lhes sustentar. Anunciadas as medidas tomadas, muitos países decretaram o lockdown (confinamento) em todo o seu território. Comércio fechado, fábricas paradas, transporte público paralisado, aglomerações de pessoas pelo motivo que fosse estavam proibidas.

Infelizmente, no Brasil, não tivemos por parte daqueles que deveriam ter adotado todas as medidas necessárias e cabíveis para o controle da pandemia a mesma atitude. O governo federal, na pessoa de seu “comandante mor”, tornou-se o maior incentivador do não seguimento das orientações dos órgãos internacionais, promovendo atos contrários a elas, com aglomeração de pessoas em atos públicos sem fazer uso da máscara facial, do álcool gel e da lavagem das mãos. Não obstante, insistia em não adotar as medidas necessárias para combater o contágio, deixando para os governadores de Estado tal decisão, numa completa demonstração de incompetência e descaso para com o povo brasileiro, a ponto de nomear ministros da saúde completamente descompromissados com a cidadania e o bem-estar da população.

Ao mesmo tempo em que a comunidade científica alertava para a ineficácia dos medicamentos Hidroxicloroquina e Cloroquina no combate ao Coronavírus, o presidente da república insistia na defesa de seu uso. Para tanto, viu-se no direito de tentar alterar a bula do remédio para convencer as pessoas de sua eficiência. Não sabemos o que pensam os profissionais da saúde e do direito, mas para nós, tratou-se de um ato criminoso. Para piorar, o ministro da educação e o filho do presidente, acharam por bem ofenderem a China criando, intencionalmente, um empasse diplomático com o país que apresentava melhores condições para apoiar cientificamente o SUS – Sistema Único de Saúde e atender a demanda brasileira por respiradores mecânicos, equipamentos de proteção individual, insumos e reagentes.

Mas o pior ainda estava por vir. O mundo esperava ansioso por uma vacina eficaz contra o Coronavírus. Aos primeiros sinais de que alguns laboratórios haviam conseguido produzi-la, governos de inúmeros países adotaram medidas urgentes para sua aquisição. Mas, no Brasil, para desespero de milhões de contaminados e outros milhões de familiares que tiveram seus entes queridos ceifados pelo Covid 19, o governo federal resolve começar uma briga política contra governadores e prefeitos, na tentativa medíocre e desumana de demonstrar seu poder de decisão sobre o povo brasileiro.

Acontece então o que todos temiam: uma nova cepa do vírus surge no Brasil aumentando vertiginosamente o número de contaminados e mortos. Novas medidas de contenção são necessárias. E o necro-governo federal, a exemplo que havia feito meses atrás, envereda pelo mesmo caminho. Nem mesmo a catástrofe ocorrida em Manaus, que levou cidadãos brasileiros a morte por falta de oxigênio, fez com que mudasse seu modo de agir, deixando clara a disposição do necro-governo em insistir na instauração do caos, empenhando-se ao máximo para obstruir e desarticular qualquer medida de enfrentamento ao Covid 19 tomada em âmbito nacional, que deveria ser empreendida pelo governo federal, indo na contramão do que foi feito em todos os países.

Em nosso entendimento, o negacionismo do necro-governo no que tange às normas da Organização Mundial da Saúde e aos protocolos deliberados pelas maiores autoridades científicas do mundo, jamais poderá ser considerado um simples desvario ideológico. Trata-se, isto sim, de uma opção clara pelo morticínio em larga escala dos mais pobres, carentes e vulneráveis.

A resistência por parte do atual governo federal às normas epidemiológicas consensuadas em todo o planeta -como bem disse o Coordenador do 5º Fórum Social Mundial e integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea) -, Jeferson Miola em artigo publicado pela página Brasil247.com de abril de 2020, não é apenas uma prova de imbecilidade ou de terraplanismo medieval. Significa, acima de tudo, a escolha da necropolítica como política oficial de Estado”.

Até quando seremos obrigados a conviver com tamanha atrocidade, é a pergunta que não quer calar na mente e no coração daqueles que entendem, independentemente de sua ideologia política ou seu credo religioso, que a vida é o dom maior concedido a todo ser vivo. Entendem ainda, que qualquer crise econômica pode ser resolvida com o tempo. Mas uma vida humana ceifada graças a incompetência e intransigência de grupos governamentais, jamais será recuperada. E este é o maior bem da humanidade.

Enveredando pelos caminhos da filosofia, da teologia e da fé, ficamos ainda mais estarrecidos diante de atitudes de apoio a este governo levadas a cabo por líderes religiosos das mais diferentes confissões. Em que pese se tratar de grupos ultraconservadores, fundamentalistas e reacionários, o apoio por eles dado às medidas e propostas adotadas pelo necro-governo brasileiro, não podem – e não devem-, ser encaradas como “fé inquestionável no poder de Deus”. A que, então, podemos atribuir o apoio recebido pelo atual governo de determinados grupos religiosos? As respostas podem ser muitas. No entanto, ao contrário da ideia defendida por muitos religiosos, leigos e leigas sobre a separação obrigatória entre religião e política, os interesses pela segunda nos parece ser uma das causas.

É interessante observar, que muitos daqueles que defendem a obrigatoriedade desta separação, se posicionam abertamente a favor deste ou daquele candidato ou partido político, de acordo com usas convicções e fazem campanhas declaradas para os seus candidatos. Prova disso pode ser obtida com uma simples pesquisa sobre as últimas eleições.

Não são poucos aqueles que, ao serem questionado sobre resultados catastróficos trazidos para a população por parte daqueles que eles ajudaram a eleger, respondem “eu acreditei nele e achei que tinha boas propostas”. Quais foram as boas propostas? Quais foram as políticas públicas apresentadas e defendidas por eles durante a campanha eleitoral? Estavam em consonância com as necessidades reais do país ou com suas convicções políticas e ideológicas?

Quem dentre nós, não se recorda da divisa “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” cantada aos quatro ventos durante a última campanha para presidente da república? Muitos foram os que votaram no candidato que a adotou como lema de campanha, por serem crentes e acreditarem que ele também era e por isso faria um governo voltado para o bem-comum, para diminuição das desigualdades, para a justiça social como se isso dependesse exclusivamente de sua religiosidade. Ledo engano. Um verdadeiro estadista não governa a partir da religião que professa, mas da Constituição.

“Brasil acima de tudo”. Para milhões de brasileiros, o candidato que defendia esta “ideia”, era o que o país precisava, pois, embalados pelo canto da sereia, enxergavam ali compromissos morais, éticos e políticos. Chamado por muitos de “mito” e de “Messias” (este segundo numa alusão ao seu nome), não tardou para que o presidente eleito revelasse sua verdadeira face genocida e fascista.

O “Brasil acima de tudo” não tem nada de original. Trata-se da retomada do primeiro verso da “Canção dos Alemães” composta por August Heinrich Hoffmann no século XIX, que em 1922 se tornou o Hino Nacional daquele país. Porém, a partir de 1933, o regime nazista ignorou os demais versos da canção, cantando apenas o primeiro, no qual figura a frase ” Deutschland über alles” – Alemanha acima de tudo”. Os resultados desta ação adotada pelos nazistas, todos conhecem.

“Deus acima de todos”, nos leva (ou deveria nos levar) a uma pergunta: “que deus?” Por certo, com as claras demonstrações de preconceitos de diversas ordens e do total descaso para com os mais pobres adotada por este governo, facilmente identificado nas medidas adotadas contra os direitos da classe trabalhadora e dos aposentados, dentre outras tantas atrocidades cometidas, nos levam a conclusão de tratar-se do deus “Mamon” (dinheiro), do deus mercado. Servir a dois senhores é algo ruim, como nos ensina o Mestre Jesus: ” Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.” (Mt 6:19-24)

O Brasil é um país laico e assim deve continuar. Ao fazer esta defesa, não estamos negando a nossa fé ou nossa confissão religiosa. Ao contrário, estamos respeitando a fé e a religião de todos os brasileiros independentemente de qual seja ela.

O que nos leva a indignação diante do quadro atual, é esta espécie de cegueira coletiva que faz com que tantas pessoas insistam em defender e apoiar o governo atual. Não bastasse isso, o comportamento social dessas pessoas chega a ser assustador. Diane de qualquer comentário contrário ao atual governo é motivo para respostas agressivas, nas mais das vezes, disseminadas por fakenews que ainda continuam sendo usados para espalhar o ódio e a divisão entre os homens.

Nos ambientes religiosos não se faz diferente. Para muitos, falar em política nestes ambientes é proibido, é pecado. Parece que estão sendo conduzidos como gado ao matadouro. Se negam a enxergar a verdade dos fatos, a ponto de atribuir a Deus –e somente a ele-, as mais de 280 mil mortes causadas pelo Covid 19: “foi a vontade de Deus”, afirmam. Como pode ser isso? A vida, obviamente, segue seu curso e a morte faz parte dele, sendo a única coisa da qual não podemos escapar. Mas isso, dentro do processo natural de nascimento – vida – morte.

Em meio a pandemia que estamos vivendo, a pobreza e a miséria só fizeram aumentar. O auxilio emergência de R$ 600,00, apesar de ser pequeno, evitou que milhões passassem fome. Agora, em nome de uma “economia estável” reduziram o valor para no máximo R$ 250,00, sem levar em conta, os aumentos absurdos aplicados aos gêneros de primeira necessidade. Qual é a fórmula utilizada por este governo para definir um valor tão baixo para o auxílio emergencial? Qual o critério utilizado, se paralelamente, continuamos assistindo aos repasses milionários de dinheiro público feitos à grandes empresários e banqueiros?

Parece-nos, infelizmente, que o critério utilizado é o da condenação de milhões de brasileiros à mais profunda miséria, fome e morte. “Brasil acima de todos, Deus acima de tudo”. Onde? Estamos muito mais próximos de outra divisa que podemos formular facilmente diante da grave crise: “Os ricos do Brasil acima de todos, Deus se vire com o resto”.

Será que estamos mergulhados num pântano de obscuridades e inverdades tamanho, que nosso povo não consegue enxergar a verdade dos fatos? Não veem que o deus dinheiro, riqueza e mercado é o que norteia a mente dos poderosos? Que nosso país está à beira de um colapso jamais visto? Aliás, colapso que já estamos vivendo na área da saúde com a falta de leitos de UTI e vagas nos hospitais de todo o país.

Até quando os poderosos irão acusar os que gritam por justiça social de serem comunistas? Ora, o Evangelho de João 10, 10 deixa muito clara a missão de Jesus, quando Ele mesmo afirma: “Eu vim para que todos tenham vida, e vida em abundância”. Todos, sem exclusão de ninguém não importando sua posição social ou credo religioso.

Nosso querido Papa Francisco tem insistido continuamente com esta verdade. Tem buscado unir as diferentes religiões em prol da humanidade. Graças a Deus, são muitos os que entenderam sua mensagem e estão cerrando fileiras com ele. Mas, ao mesmo tempo, temos aqueles que o perseguem tentando desacreditá-lo. São muitos os que o acusam de “comunista”. Em sua mensagem de Natal proferida em 2020, Papa Francisco falou sobre a importância do amor cristão aos pobres e citou Dom Helder Câmara, referindo-se a ele como um “santo bispo brasileiro” repetindo sua famosa frase: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista”. Dom Helder viveu verdadeiramente a mensagem das Bem-Aventuranças dos que tem fome e sede de justiça. E não era comunista.

Causa-nos espanto também, assistir às campanhas empreendidas por grupos fundamentalistas e neopentecostais que insistem em manter as Igrejas abertas para o culto religioso durante a fase vermelha da pandemia.

Reconhecemos ser de grande importância para os fiéis frequentarem suas Igrejas, participarem dos cultos religiosos e congregarem entre si. No entanto, não podemos incorrer no erro de insistir em algo que pode trazer perigo de morte para as pessoas. Isso se chama irresponsabilidade, e para aqueles que insistem em usar como defesa a proteção de Deus e sua benevolência, visto que são movidos pela fé, lembremo-nos do que o próprio Cristo respondeu ao tentador durante seu retiro no deserto, ao ser levado por ele para a Cidade Santa e colocado na parte mais alta do Templo e ouvir dele: “Se tu és o filho de Deus, joga te para baixo! Porque a escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropece em nenhuma pedra.'” Jesus respondeu-lhe: “A escritura também diz não tente o Senhor teu Deus”. (Mt 4,5-7).

Nesta passagem do Evangelho de Mateus, estão registradas as três tentações sofridas por Jesus (Mt 4, 1-11). Nelas, Jesus é tentado a falsificar sua própria missão, realizando uma atividade que só busque satisfazer às necessidades imediatas, buscar o prestígio e ambicionar o poder e as riquezas. Jesus, no entanto, resiste a todas elas. Seu projeto de justiça é transformar as estruturas segundo a vontade de Deus (palavra que sai da boca de Deus), não pondo Deus a seu próprio serviço e interesse (Não tente o senhor seu Deus), e não absolutizando coisas que geram opressões e exploração sobre os homens, criando ídolos (você adorará ao Senhor seu Deus).

Em outra passagem do Evangelho de Mateus (6, 5-6), encontramos o ensinamento de Jesus dirigido diretamente à nós, no que se refere ao modo de orar e expressar a fé em Deus: “Quando vocês rezarem, não sejam como os hipócritas, que gostam de rezar em pé nas sinagogas e nas esquinas, para serem vistos pelos homens. Eu garanto a vocês: eles já receberam a recompensa. Ao contrário, quando você rezar, entre no seu quarto, feche a porta, e reze ao seu Pai ocultamente; e o seu Pai, que vê o escondido, recompensará você.”

Aprendemos com essa instrução de Jesus, que na oração o homem se volta para Deus, reconhecendo-o como único, absoluto, e reconhecendo a si mesmo como criatura, relativizando a auto-suficiência. Por isso, rezar para ser elogiado é colocar-se como centro, falsificando a oração.

Não estamos aqui, menosprezando o imenso valor da vida comunitária, partilhada e vivida nos ambientes religiosos –dentre outros-, sejam eles quais forem. Mas, não podemos nos omitir frente a responsabilidade social, e até mesmo religiosa, de nos protegermos fisicamente diante de catástrofes como a que estamos atravessando. Em nosso entendimento, salvo melhor juízo, aqueles que defendem a realização de cultos religiosos durante a pandemia, devem ser enquadrados como responsáveis por qualquer dano causado às famílias, seja ele pela perda de um ente querido, ou pela dor e o desespero de assistir ao não atendimento necessário para um familiar ou amigo, face ao colapso hospitalar que estamos vivendo.

Durante o mês de março de 2020, o presidente da república havia decretado que igrejas fossem consideradas atividades essenciais, obviamente, atendendo a pedidos de grupos que o apoiaram em sua campanha, visto que estávamos no início da pandemia e não tínhamos parâmetros científicos para embasar tal decisão. Tínhamos, isto sim, alertas da Organização Mundial da Saúde e de outros órgãos internacionais, para o perigo de contaminação em massa.

Agora, um ano depois e diante de descoberta ainda mais alarmantes sobre o perigo real instaurado em todo o mundo, é o governador do Estado de São Paulo, que assina um decreto reconhecendo a essencialidade de todas as igrejas no Estado e seu funcionamento em regularidade, obedecidos os critérios sanitários de proteção aos que dela participam: “Esperança, fé e oração: com vacinas, vamos vencer a Covid. Viva a vida”, disse o governador ao lado de deputados federais e estaduais paulistas que integram frentes parlamentares evangélicas.

Perdoem-nos os que pensam diferente, mas estamos diante de uma atitude irresponsável por parte de todos os envolvidos neste decreto absurdo. E dizemos isso diante das informações recentes sobre o crescimento de número de contaminados e mortos pelo Covid 19 e suas variantes ainda mais perigosas, conforme anunciou o Jornal Brasil de Fato do dia 19 de março/21: ” Vírus mais transmissíveis, que levam a quadros de infecções mais graves e afetam, inclusive, a jovens e crianças. Essas são algumas das características das novas variantes do coronavírus detectadas no Brasil. A mais recente tem o nome N9 e foi identificada pela Fiocruz nesta semana. Outras duas, chamadas de P.1 e P.2, foram identificadas nos últimos cinco meses e já se espalharam pelo país”.

Não obstante, A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, na sexta-feira (12), que o Brasil representa um risco para todo o mundo: “Certamente gostaríamos de ver o Brasil em uma direção contrária. O sistema de saúde do país está sob grande pressão. É preciso levar a situação a sério. O que acontece no Brasil tem consequências mundiais”, disse o diretor-executivo da OMS, Mike Ryan”.

Diante de todo o exposto, somos levados a refletir sobre o papel que as igrejas exercem hoje em meio à sociedade e, sobremaneira, aos seus fiéis. No que tange à Igreja Católica, encontramos eco para nossos pensamentos nas palavras de Dom Derio Olivero, bispo de Pinerolo – Itália, em entrevista concedida à Revista Vida Pastorale/ago/set/2020, após ter permanecido internado por 50 dias vitimado Covid 19.

Dom Derio é um daqueles homens alinhados com a teologia que anima e inspira o coração do Papa Francisco e em conjunto com ele almeja uma Igreja “que saiba dar voz à vivacidade do cristianismo e à transparência do Evangelho; que ajude a pensar com liberdade e que aposte muito nas relações.” De uma Igreja que viva as Bem-Aventuranças (Mt 5, 1-12) e que combata com força e profetismo as políticas do anticristo, daquelas forças obscurantistas do antireino, que conspiram contra a vida e a justiça social.

Durante a entrevista, Dom Derio citou o teólogo P. Giuliano Zanchi e sua afirmação sobre a Igreja: “as palavras da Igreja estão desgastadas. (…) não afetam a vida e não abrem para a esperança. Esta é uma fragilidade da nossa Igreja. Em uma época de mudança radical de paradigma, ainda não encontramos palavras para falar do cristianismo de uma nova maneira. A Igreja muitas vezes é uma boia máquina organizacional, mas não uma comunidade de relações”.

Nas palavras do Prelado, contemplamos uma clara alusão aos esforços do Papa Francisco ao defender uma Igreja em Saída, Samaritana, uma Igreja que se mistura com a massa como um fermento. Dom Derio questiona: “O fermento que estamos usando é de boa qualidade? As obras acompanham as nossas pregações?! Temos demonstrado alegria na nossa viva/vivência cristã? E citando o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, lembra o desafio causticamente feito por este: “Cristãos, mostrem-me a vossa alegria e vos crerei”.

Estamos diante de uma rica instrução: é necessário construir relações saudáveis, autênticas e confiáveis com as pessoas, sendo esta uma das mais urgentes missões a serem empreendidas neste tempo tenebroso de pandemia, dando uma ressignificação às relações que travamos com os outros, com o outro e com a natureza. Para nossa tristeza, estamos vivendo um período no qual tudo está se tornando descartável, inclusive as relações.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2009) construiu a ideologia de um mundo liquido a partir de um jargão muito conhecido no mundo capitalista: “um produto que não se desgasta é uma tragédia para os negócios”. Ou seja: todo novo produto lançado, deve ter um tempo curto de vida útil, tornando-se, propositadamente, inutilizável ou obsoleto num curto espaço de tempo, levando o consumidor a comprar novamente. Trata-se da “Obsolescência Programada”.

Bauman, contudo, não se limitou ao material. Ele popularizou a ideia de “relações liquidas”. Em tempos onde tudo deve ser muito rápido, tudo seria liquido e incerto: a modernidade, o amor, os vínculos. Reproduzindo a linguagem de Bauman, “as relações escorrem por entre os dedos”.

Estaremos nós vivendo o ápice que foi indicado por Marx e Engels no século XIX? “Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas?” Fazemos esta pergunta diante de recentes acontecimentos nos quais certezas, instituições, sentido de pertença, etc., parecem estar virando pó. Por outro lado, jamais vimos tanta intolerância, ódios e dogmatismos se disseminarem e atingirem milhões de pessoas com tamanha velocidade.

Contudo, estarão de fato desgastadas as palavras da Igreja? Não se trata antes, de pessoas instaladas em suas confortáveis posições eclesiásticas das quais se negam a abrir mão diante da nova realidade mundial? O atual timoneiro da barca de Pedro, tem dado demonstrações contínuas de que a Igreja precisa se renovar, precisa ser reformada de dentro para fora. E ele tem sido o primeiro a dar amostras e testemunhos desta tão necessária reforma. Mas, as palavras e os gestos de Francisco têm mexido com as estruturas seculares de uma Cúria Romana que se faz presente em todos os continentes e que se recusa veementemente a aceitar esta verdade.

Por outro lado, suas posições frente as injustiças sociais, o acúmulo de riquezas, o aumento da miséria e da fome, a falta de acolhimento aos refugiados, etc., tem incomodado poderosos políticos e grandes empresários de todo o mundo. Francisco está desafiando um sistema que globalizou a indiferença e o individualismo nos mais profundos significados contidos nestas conduta e postura.

Diante da pandemia do Coronavírus, Francisco deu um exemplo inigualável sobre como deveríamos agir enquanto Igreja, povo de Deus, ao fazer suas orações na Praça de São Pedro completamente só diante do Crucificado, numa clara demonstração de respeito à vida humana.

Enquanto isso, somos obrigados a conviver com mensagens postadas nas redes sociais por padres, pastores, religiosos, religiosas e leigos, que aparentemente se negam a aceitar a gravidade da pandemia, mesmo diante do crescente número de mortos.

A que podemos atribuir tamanha insensibilidade? Talvez ao que Bauman afirmou: estamos vivendo numa sociedade liquida na qual tudo escorre pelos dedos. Não será, contudo, o crescimento do joio semeado pelo inimigo crescendo e sufocando as sementes do Reino levando-as à morte? Temos de admitir, lamentavelmente, que em muitos ambientes a religião tem se tornado abrigo para sepulcros caiados e fariseus hipócritas.

Quais aprendizados iremos extrair da catástrofe imposta pelo coronavírus ainda é uma incógnita. Mas um deles já sabemos: somos todos iguais diante da natureza ou, se preferirem, de Deus.

Não é hora para discussões ideológicas. Estas deverão ficar para depois. É hora, sim, de nos unirmos em torno do bem-comum, da defesa da vida, da partilha, do engajamento na luta contra este mal que nos assola a todos. As atrocidades cometidas e o descaso por parte de autoridades e seus asseclas devem ser guardadas para não serem esquecidas em tempos vindouros, para não cairmos em novas ciladas.

Porém, no agora, busquemos viver a mensagem das Bem-Aventuranças em sua plenitude, mantendo acesa em nossos corações a chama da justiça. E que Deus nos conceda sabedoria para vivê-las.

Shalom!

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