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Fé cristã, direitos humanos e um alerta para o Brasil

É fato que o atual governo brasileiro promove um desmonte das políticas de direitos humanos construídas desde o final da ditadura

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Neste 10 de dezembro foi celebrado mais um aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Setenta e um anos depois da adoção e da proclamação dos 30 artigos pela ONU, ainda há muita incompreensão e ignorância em relação ao tema, que servem justamente para sustentar a violação de direitos por governos mundo afora. “Direitos humanos é coisa da esquerda e de comunista pra defender bandido”, “o que o pessoal dos direitos humanos diz das vítimas dos bandidos?” – frases como estas são comumente ouvidas, repetidas e repercutidas, inclusive por apresentadores de programas na TV e no rádio, sem contar as postagens em mídias sociais.

A defesa de que uma pessoa presa seja tratada como ser humano, durante o tempo que cumpre a punição que lhe foi imposta, é apenas um dos direitos listados no documento de 1948. A Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê, entre tantos outros elementos a que seres humanos têm direito neste mundo, sem distinção de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição (art. II, 1), o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal que rege todos os outros (art III). Na lista de direitos estão a liberdade de pensamento, consciência e religião (art. XVIII), a liberdade de opinião e expressão (art. XIX) e a liberdade de reunião e associação pacífica (art. XX).

Destaco estes artigos por conta de matéria publicada, neste 10 de dezembro, pelo Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias: “Conselho Nacional de Igrejas das Filipinas é acusado de terrorismo”. Bereia checou notícia do site Gospel+, de 7 de dezembro, que informa uma decisão tomada pelo governo das Filipinas que incluiu aquela organização cristã na lista de “organizações de frente de grupos terroristas comunistas locais”.

O Coletivo Bereia checou a informação e a classificou como verdadeira. De fato o Conselho de Igrejas das Filipinas foi enquadrado pelo governo daquele país como “terrorista comunista”. A organização emitiu uma declaração sobre o caso que confirma que ela foi acusada formalmente junto com outras várias organizações humanitárias e de serviço, em lista apresentada pelo Major-General Reuben Basiao, vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas das Filipinas, em 5 de novembro. Na declaração, o Conselho de Igrejas “rejeita a inclusão infundada e sem base de seu nome na lista” e denuncia que a acusação é “uma afronta ao trabalho e ministério do NCCP [sigla do organismo em inglês], suas igrejas membros, membros associados e parceiros locais e internacionais” e também a classifica como “extremamente alarmante e perigosa”.

O Conselho Nacional de Igrejas das Filipinas é uma organização ecumênica formada por nove igrejas protestantes e uma católica não-romana – A Igreja Católica Apostólica, a Convenção de Igrejas Batistas das Filipinas, a Igreja Episcopal nas Filipinas, a Igreja Evangélica Metodista nas Ilhas Filipinas, a Igreja Filipina Independente, a Igreja Unida Ecumênica, a Igreja Luterana nas Filipinas, o Exército da Salvação, a Igreja Unida de Cristo nas Filipinas e a Igreja Metodista Unida. Fundado em 1963, o NCCP afirma suas bases na missão de Cristo, e no oferecimento às igrejas oportunidades de testemunho comum como resposta conjunta às necessidades e preocupações das pessoas.

Desde a posse do presidente Rodrigo Duterte, em 2016, o país enfrenta extenso número de execuções sumárias de suspeitos de crimes e repressão política a opositores. A situação vem sendo acompanhada internacionalmente pela ONU e por organizações de defesa de direitos humanos, incluindo várias instituições cristãs, que têm pressionado o governo a uma mudança de atitude.

Duterte foi eleito com um recorde de votos. Durante sua campanha, o filipino prometeu uma guerra incessante contra traficantes e dependentes químicos. O discurso antidrogas agrada parte significativa da população. “Esqueçam as leis sobre direitos humanos. Se eu for eleito presidente, farei como quando fui prefeito. Traficantes, ladrões armados e vadios, melhor sumirem, porque vou matá-los”, Duterte disse em um comício. “Vou jogá-los na Baía de Manila e engordar os peixes.”

A Declaração “Justiça e responsabilidade pelas violações de direitos humanos nas Filipinas”, aprovada pela 25ª Convenção Geral do Conselho de Igrejas das Filipinas (25 a 28 de novembro de 2019) mostra que o organismo não se intimidou com a acusação do governo. O texto denuncia as violações que estão ocorrendo diante das políticas governamentais.

O documento das igrejas filipinas diz: “De acordo com inúmeros relatos, na guerra contra as drogas, cerca de 27 mil pessoas foram mortas em relação com a campanha contra drogas ilegais. Principalmente nas comunidades pobres, o número de mortes, tanto pelas mãos da polícia quanto por indivíduos desconhecidos, não foi adequadamente investigado; a adequação da conduta policial não foi determinada; e os assaltantes desconhecidos não foram presos. Raramente ouvimos falar de grandes traficantes de drogas que enfrentaram a barreira da justiça. A guerra contra as drogas tem sido implacável, e a situação só se intensificará se continuar sendo tratada como um problema criminal e não como um problema de saúde. Para piorar a situação, existem os ‘policiais ninjas’ que reciclam drogas apreendidas, tornando toda a campanha profundamente suspeita. Havia esperança de que houvesse mudanças positivas na condução da campanha do governo sobre drogas ilegais após a nomeação da vice-presidente Leni Robredo como czar antidrogas. Infelizmente, ela foi demitida da posição após apenas três semanas”.

 

O texto prossegue afirmando que: “Além da guerra às drogas, mais de 2 mil defensores dos direitos humanos foram atacados por vários métodos, incluindo ameaças, intimidação, assédio, acusações falsas e assassinatos extrajudiciais. Atualmente, existem mais de 200 casos de assassinatos extrajudiciais de defensores dos direitos humanos, incluindo pessoas das igrejas, algumas das quais pertencentes às igrejas-membros do NCCP. A maioria das vítimas das várias violações de direitos é crítica aos programas e políticas do governo que desconsideram os direitos das pessoas. Até o Conselho foi incluído na lista de ‘organizações de frente de grupos terroristas comunistas locais’ pelo Departamento de Defesa Nacional”.

O caso das Filipinas é um alerta para o Brasil, para as igrejas e seus ativistas comprometidos com a defesa dos direitos humanos. Tanto a revista americana The New Yorker quanto o Council on Foreign Relations (CFR) destacam as semelhanças entre discursos de Rodrigo Duterte e de Jair Bolsonaro, em particular no endosso à truculência da polícia, a execuções extrajudiciais e à repressão violenta à oposição política.

Importa registrar que Jair Bolsonaro já usou o termo “terrorismo” para acusar o Greenpeace, diante da atuação da ONG no caso do vazamento de óleo no litoral do Nordeste, e para avaliar os protestos populares no Chile. Em agosto passado, Bolsonaro criticou a realização do Sínodo da Amazônia da Igreja Católica Romana, quando disse que o Sínodo seria um evento político e confirmou que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) estava monitorando líderes católicos.

Outro dado significativo é que o Brasil foi alvo de 37 denúncias de violações de direitos humanos na ONU por parte de organizações brasileiras e estrangeiras, deputados e OAB. É um caso a cada nove dias. Entre as denúncias estão: situação das prisões, a violência policial, o fechamento de conselhos, o desmonte de mecanismos de combate à tortura, meio ambiente, as situações das barragens, o comportamento de Bolsonaro sobre o golpe de 1964, e a condição dos indígenas. Somente até março de 2019 quatro assassinatos de ativistas já haviam sido registrados.

Em 2017, relatório da organização Global Witness apontava o Brasil como o primeiro dos quatro países que têm maior número de assassinatos de ativistas de direitos humanos e ambientais, ao lado das Filipinas, da Colômbia e do México. Naquele ano foram registradas 57 mortes no Brasil. No Dia Mundial dos Direitos Humanos, a constatação de organizações e membros do corpo diplomático é de que o Brasil está no momento mais crítico em relação aos direitos humanos desde o restabelecimento da democracia, em 1985. Durante os governos FHC, Lula, Dilma e Temer, denúncias à ONU também existiram mas, nos últimos meses, a dimensão dos ataques a ativistas e lideranças de movimentos sociais e a frequência dos casos tem se multiplicado como nunca.

É fato que o atual governo brasileiro promove um desmonte das políticas de direitos humanos construídas desde o final da ditadura. O atrelamento da pasta ministerial de direitos humanos aos temas “mulher” e “família”, tratados sob o viés moral, com a liderança da pastora pentecostal e advogada Damares Alves, não só esvaziou ênfases de governo na área, como promoveu o desmantelamento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, intervenção e censura no Conselho Nacional de Direitos Humanos, retaliações contra a Subprocuradora-Geral da República Deborah Duprat e aumento da violência no campo e contra povos indígenas.

Valem, como indicação para o futuro, as palavras do documento Conselho de Igrejas das Filipinas: “O NCCP declara que não vai se intimidar com a acusação e continuará seu compromisso com a justiça: ‘Mas chegará o tempo do acerto de contas, Deus “[…] rolará a justiça como as águas e a retidão como uma corrente que flui sempre’ (Amós 5:24). O NCCP continuará a defender o dom da dignidade humana de Deus, trabalhará com outros defensores dos direitos e maximizará todos os locais e plataformas nacionais e internacionais, para que aqueles que violam e comprometem os direitos humanos enfrentem justiça e responsabilidade por suas transgressões. Afirmamos nosso compromisso de continuar a busca por justiça e paz, por mais árduo que possa parecer o caminho. Exigimos o julgamento dos responsáveis por crimes contra o povo filipino. Rejeitamos a solução militarista e repressiva para o conflito armado e o problema das drogas”.

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