Diálogos da Fé

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Ernesto Geisel, as igrejas evangélicas e a ditadura

Muitas congregações perseguiram fiéis considerados “subversivos” e fecharam os olhos para as atrocidades do regime

Geisel era luterano
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Houve muito alvoroço na mídia com a divulgação de um memorando secreto da CIA que registra o fato de o ditador Ernesto Geisel não só ter conhecimento, mas autorizar a execução sumária de opositores do regime.

Muitos comentários mostraram assombro com a forma fria e crua com que se planejava os assassinatos. Quem se assombrou não deve se lembrar que, em 2014, o resultado de dois anos e meio de trabalho da Comissão Nacional da Verdade foi apresentado num relatório de 3.338 páginas. Nele está a apuração destas ações e de muitas outras, que mostram as atrocidades cometidas pelo regime. Tudo disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/

A comissão mostrou que a violação de direitos nos 21 anos de ditadura (prisões arbitrárias, sequestros, tortura em alto grau, desaparecimentos forçados, assassinatos) não foi abuso de poder ou excesso dos ditadores, mas ações coordenadas com a participação plena dos ditadores de plantão.

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O trabalho mostrou ainda que as execuções não alcançaram apenas opositores ativistas e grupos políticos, mas gente que apenas opinou ou protestou e foi classificada como “subversiva”: professores, jornalistas, operários, agricultores, estudantes, religiosos, cidadãos estrangeiros e até militares que ousaram questionar o regime. Destes, 56% tinham menos de 30 anos.

Geisel frequentava a Igreja Evangélica de Confissão Luterana. O fato de um evangélico ter ocupado o Palácio do Planalto foi celebrado por lideranças das várias igrejas.  Exemplo é a publicação do jornal oficial da Igreja Presbiteriana, o Brasil Presbiteriano, de março-abril de 1974, que reproduziu parte de um boletim da Igreja Presbiteriana Nacional de Brasília: “Um homem probo, honesto, operoso e capaz, deixa o poder e assume o seu lugar outro homem público, com folha de serviço relevante e personalidade definida e, sobretudo isso, um crente evangélico.  […] Nossas orações a Deus para que seu governo seja uma benção para todos os brasileiros de todas as crenças. Adeus Presidente Médici – Benvindo Irmão Geisel”.

Um crente evangélico que construiu uma imagem de conciliador, mas que, antes de morrer em 1996, declarou aprovar a tortura em depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas. E agora, em memorando contundente, revela-se mandante de assassinatos.

O Volume II do relatório da comissão deixa claro como católicos e evangélicos apoiaram o regime militar, por silêncio e omissão ou por ações explícitas. Além de Geisel, outros evangélicos ocuparam cargos de destaque, entre eles os governadores presbiterianos Geremias Fontes, no Rio de Janeiro, e Eraldo Gueiros Leite, em Pernambuco. E o jurista presbiteriano Nehemias Gueiros, redator do Ato Institucional número 2, de 1965.

Evangélicos figuraram entre os colaboradores de órgãos de repressão, militares torturadores e agentes civis (sete, conforme o relatório da Comissão da Verdade). E foram inúmeros os líderes apoiadores, como doutrinadores políticos em suas congregações religiosas e/ou como delatores de “subversivos”, várias “irmãos da igreja”.

A repressão interna nas igrejas evangélicas, em apoio ideológico ao regime, foi muito violenta, com perseguição a pastores e líderes leigos, fechamento de seminários teológicos e intervenções em instituições educacionais confessionais.

Isto revela um outro retrato de evangélicos no período da ditadura: aqueles que, das várias igrejas, eram comprometidos com uma base bíblica, teológica e testemunhavam sua fé e se colocavam contra o regime de exceção. O governo militar os considerou inimigos da segurança nacional, daí as muitas prisões arbitrárias (25), torturas (18), expulsões e banimentos (14), que levaram ao desaparecimento forçado (5) e à morte (2).

O relatório da comissão deixa claro que dois anos e meio não foram suficientes para todos os levantamentos necessários. A descoberta do documento da CIA confirma. Há muita coisa silenciada e escondida que ainda vai ser revelada.

Temos um passado mal resolvido, que deixou marcas e feridas abertas não cicatrizadas. Um passado que não foi construído com verdade e com justiça cria estas marcas. É preciso buscar a verdade e fazer a justiça fluir como um rio, como diz, na Bíblia, o profeta Amós:

“[Deus diz:] sei quantas são as suas transgressões e quão grandes são os seus pecados. Vocês oprimem o justo, recebem suborno e impedem que se faça justiça ao pobre nos tribunais. (…) Odeiem o mal, amem o bem; estabeleçam a justiça nos tribunais. (…) Corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro perene”.

A ditadura foi silenciada, mal contada e está incorporada: ainda existe nas instituições e em suas práticas. Por isso o autoritarismo ainda é realidade. Por isso a tortura permanece como prática em delegacias, em quartéis, em prisões. Por isso as execuções sumárias prevalecem. Por isso ainda precisamos perguntar “Onde está o Amarildo?” ou “Quem matou Marielle?”

Por consequência, a memória nunca deve ser vista apenas como revisão ou recuperação do passado. Ela precisa ser vista também como utopia. É o olhar para o passado como algo que alimenta o presente e projeta um futuro de paz e justiça. 

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