Diálogos da Fé

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Entre fuzis e fogueiras, é preciso enfrentar as trevas do fanatismo

O grande perigo dos fanáticos está na certeza absoluta e incontestável que eles têm das próprias verdades

Entre fuzis e fogueiras, é preciso enfrentar as trevas do fanatismo
Entre fuzis e fogueiras, é preciso enfrentar as trevas do fanatismo
Manifestantes queimam boneca de Judith Butler
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Uma das imagens que carregamos conosco quando vivemos tempos difíceis é a da escuridão. Estar no escuro é sinônimo de estar perdido, buscar saída no fim de um túnel de situações controversas e de obstáculos na vida. Por isto, na cultura judaico-greco-cristã, a imagem das trevas está relacionada ao mal, a momentos negativos, de crise. Dela temos a figura do Hades como o subterrâneo das trevas e da morte, de Lúcifer, como Príncipe das Trevas, e de Érebo, Deus da escuridão, do reino sombrio.

No século XIV, o poeta italiano Francesco Petrarca se sentia perdido num tempo que avaliava ser de ignorância, perseguição e confusão frente às diferentes visões do mundo. Na conclusão de um poema épico denominado “África”, ele escreveu:

“Eu estou fadado a viver entre tempestades de confusão. Mas, como é meu desejo, talvez você (leitor) viva muito tempo depois de mim, em tempos melhores. Esse esquecimento e essa sonolência não durarão para sempre. Quando a escuridão se dispersar, nossos descendentes poderão retornar à pureza do antigo esplendor (brilho)”.

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Por conta deste contexto, a Idade Média foi classificada como a Idade das Trevas. A mesma noção passou a ser atribuída a outros períodos de intensificação da intolerância na história humana, como aquele que vivemos no Brasil sob ditadura civil-militar.

Agora, as trevas parecem ser a imagem do mundo que experimentamos. Só nos últimos dias, o noticiário trouxe dois episódios que remetem ao que Petrarca atribuiu à Idade Média: ignorância, perseguição, confusão.

Um jovem de 26 anos, cristão decepcionado tornado ateu, de posse de um fuzil, vestido em roupas de combate, abriu fogo contra cidadãos que estavam num culto na Primeira Igreja Batista de Sutherland Springs (Texas/EUA), deixando 26 mortos. Ele mesmo perdeu a vida em decorrência do ato.

No Brasil, algumas dezenas de manifestantes foram ao SESC Pompeia, em São Paulo, para, simbolicamente, reviver a Idade das Trevas e “queimar uma bruxa”. A pessoa assim classificada é a renomada filósofa estadunidense Judith Butler, que participa de evento acadêmico naquele espaço. Os manifestantes tinham ouvido dizer ou lido por aí, que Butler é uma destruidora da família, criadora do que chamam de “ideologia de gênero”, suposta base da implantação de uma ditadura gay.

Estes dois episódios se somam a outros, não são isolados. São atos concretos de violência e de ódio contra quem está fora do “padrão” e contra quem ousa ir além do mesmo. Como aqueles contra terreiros de Candomblé, contra negros, contra cidadãos de outros povos, contra arte e contra artistas, contra indivíduos que portam bandeiras ou se vestem com determinada cor, contra a população LGBTI, em estádios de futebol, em espaços culturais. São faces sombrias do fanatismo.

Fanatismo refere-se à postura de partidários acríticos, extremistas e exaltados por uma causa. O grande perigo do fanatismo está na certeza absoluta e incontestável que essas pessoas têm a respeito das verdades que um dia lhe foram reveladas (portanto, não uma verdade qualquer, mas “A” verdade). Fanáticos não agem com a razão quando defrontados com posições diferentes ou questionamentos daquilo que defendem. Ao contrário, têm como marca a irracionalidade, o autoritarismo e a passionalidade, frequentemente agressiva, em que o fim, qualquer que seja, justifica os meios.

O fanatismo nega o diálogo, a diversidade, o direito do Outro à diferença. Fanáticos carregam uma cegueira que não lhes permite ver como um igual aquele que pensa e se comporta diferentemente. Pior, consideram inimigos todos os que não compartilham da sua verdade. Por isto agridem, fuzilam ou lançam bombas contra quem consideram opositores, promovem linchamentos ou queimam seus opostos em fogueiras, de forma literal ou simbólica.

Muito se fala de fanatismo religioso mas há outras grandes bases para fanáticos: o racismo, o xenofobismo, a oposição política, a devoção (esportiva, a celebridades, a objetos). Tudo isto, quando intensificado, contribui para o retrocesso a um tempo de trevas.

Há várias reflexões sobre as causas deste clima social. Uma delas seria a ampla visibilidade e a maior capacidade de convocação que fanáticos têm alcançado nas mídias sociais. Lideranças políticas que promovem o ódio também seriam fonte de fanatismo, como o presidente dos EUA Donald Trump (estatísticas mostram um crescente número de atentados com armas de fogo neste período). Também a forma como se deu a tomada do poder federal no Brasil no período pós-eleições de 2014, “com o Supremo, com tudo”.

Como superar este “tempo de trevas”? Contragolpes e concorrência talvez não sejam o melhor caminho (como a eliminação da vida do jovem no Texas e a postura de grupos apoiadores de Judith Butler na porta do SESC). Processos educativos, ações públicas de respeito e aceitação mútua e a humanização das mídias podem ser mais eficazes. A sabedoria de Agostinho, na tradição cristã, pode apontar uma direção: “Nas coisas essenciais, a unidade; nas coisas não essenciais, a liberdade; em todas as coisas, o amor”.

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