Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Do terreiro à avenida, o tempo e o templo dos orixás

Nas passarelas e sambódromos, a saga das divindades em enredos denota a capacidade do candomblé de instaurar o sagrado em qualquer época e lugar

A Mancha Verde, em São Paulo, homenageia o candomblé
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Vocês conhecem Hilária Batista de Almeida? Ela nasceu em Santo Amaro da Purificação e, embora seja lembrada como a grande mãe do samba, foi uma eminente mãe de santo. Filha de Oxum, iniciada ainda na Bahia, foi Iyá Kekerê do terreiro de João Alabá. Sim, falo de Tia Ciata, a mais famosa entre as ialorixás que aportaram no Rio de Janeiro e deram origem ao samba como gênero musical.

No quintal de sua casa, em festas que reuniam gente do samba, da capoeira e do candomblé, abrigou grandes nomes da música. Tornou-se a maior referência no surgimento do ritmo que identifica o Brasil no mundo. Na casa de Tia Ciata foi composto “Pelo Telefone”, o primeiro samba gravado na história, em 1916.

O movimento das “tias baianas” foi muito comum entre o fim do século XIX e início do século XX. Como dizem os mais velhos, “o samba nasceu na Bahia, mas se criou no Rio de Janeiro”. A área onde Tia Ciata residia, na Praça Onze, era chamada de Pequena África, pois abrigava negros e negras nascidos no Nordeste e em outras regiões em busca de emprego e melhores condições de sobrevivência.

De acordo com alguns registros, Tia Ciata casou-se e teve 14 filhos. Graças a ela, que por meio de seu orixá teria curado o então presidente Wenceslau Braz, o marido tornou-se funcionário público. Grande cozinheira, mantinha uma concorrida barraca na Festa da Penha e em sua casa recebia com mesas fartas compositores como Donga, Sinhô e João da Baiana. Naquele cenário e com essas personagens nasceram as primeiras escolas de samba, que cresceram e se organizaram, tornando-se a principal atração do carnaval.

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Sempre ameaçadas, as escolas de samba tiveram nos terreiros não só o apoio para a execução dos desfiles, mas a proteção espiritual indispensável para aquele povo que saía pra brincar o carnaval e contava tão somente com a própria sorte.

Fugir das brigas, correr da polícia, voltar a salvo pra casa depois da folia… Aos sambistas, que enfrentaram todos os estigmas, foram taxados de vagabundos e marginais, mas dedicaram amor e devoção a suas agremiações. Nunca faltou a proteção de Exu e de todos os orixás. Quando se diz que o samba é religião, não há exagero. E os orixás, apesar do sincretismo, são os santos do samba.

Das escolas mais tradicionais às mais modernas, não há uma que não tenha levado à avenida algum enredo sobre orixá. Sambas que se tornaram célebres e foram cantados no Brasil inteiro. Desfiles gloriosos, memoráveis. Campeonatos festejados por anos e anos.

Em 1984, a Portela foi campeã com o enredo “Contos de Areia”, uma exaltação a grandes personalidades de sua história, como Natal, Paulo da Portela e Clara Nunes, e aos orixás Oranian, Oxóssi e Iansã. Antes, em 1978, com luxo e originalidade, Joãosinho Trinta sagrava-se campeoníssimo e marcava época na Beija-flor com o enredo “A Criação do Mundo Segundo a Tradição Nagô”.

Em 1986, Dorival Caymmi mostrava ao mundo o que a baiana e a Mangueira têm. Mais uma vez os orixás tomaram o sambódromo e fizeram ecoar o famoso refrão: “Tem xinxim e acarajé, tamborim e samba no pé”. Com as águas de Iemanjá, Oxum e Oxalá, a Mocidade Independente de Padre Miguel conquistava seu bicampeonato em 1991.

Em 1997, a Viradouro viu brilhar sua estrela exaltando em seu samba Nanã, Iemanjá e Oxum, fazendo renascer o gênio de Joãosinho Trinta. “Áfricas: do Berço Real à Corte Brasiliana” foi o tema campeão da Beija Flor em 2007 e o “Tambor” fez ressoar em 2009 o grito de campeã do Salgueiro.

“Maria Bethânia, a Menina dos Olhos de Oyá”, exaltou a diva da MPB e seus orixás e com um desfile irretocável a Mangueira chegou na frente. A águia pedia passagem e o lindo abre-alas anunciava com o brilho do ouro mais uma estrela para a maior campeã do carnaval carioca. “Oh mamãe, ora ieiê ô, vem me banhar de axé, ora ieiê ô!”, cantou a Portela em homenagem a Oxum, a deusa das águas.

As maiores campeãs do carnaval de São Paulo, Vai-Vai e Mocidade Alegre, têm profunda ligação com as religiões de matriz africana e sempre investiram em enredos com temática afro, conquistando títulos inesquecíveis. A Vai-Vai venceu em 1982, com “Orun-Ayê – o eterno amanhecer”, e em 2012 “Oju Obá” deu o campeonato à Mocidade. Interessante que essas duas agremiações, que juntas somam 25 campeonatos, mantêm nos seus quadros pais de santo oficiais, responsáveis pelas obrigações religiosas. Pai Francisco de Oxum é o babalorixá da Vai-Vai e Pai Tinho de Odé cuida dos rituais da Mocidade.

No Brasil inteiro, as escolas de samba tiveram um papel fundamental na preservação das tradições dos terreiros. A obrigatoriedade da ala das baianas é a marca incontestável da herança de Tia Ciata e da presença do candomblé na formação das escolas.

Em um país marcado pelo racismo e pela intolerância religiosa, em que os povos de matriz africana são demonizados e achincalhados em rede nacional por concessões públicas que deveriam difundir o respeito e levar ao povo informação e cultura, os desfiles das escolas de samba estão entre os poucos momentos de mídia positiva sobre o candomblé e suas divindades.

Além disso, como manifestações culturais afro-brasileiras, as escolas de samba continuam a sofrer uma perseguição cerrada. Seu legado de resistência tem sido ignorado por diversas prefeituras que, sob o pretexto de reverterem recursos para a saúde e educação, reduzem ou simplesmente cortam as verbas destinadas às agremiações.

No Rio de Janeiro, o bispo evangélico e prefeito Marcelo Crivella reduziu a verba pela metade e segue boicotando qualquer evento relacionado à população negra, como a festa de Iemanjá, que a partir deste ano será realizada sem o apoio do município.

Sambistas de fé continuam a acreditar nos orixás, pois sabem, como cantou o poetinha Vinícius de Moraes, que “a felicidade do pobre parece a grande ilusão do carnaval: a gente trabalha o ano inteiro por um instante de sonho, pra fazer a fantasia de rei, ou de pirata, ou de jardineira, pra tudo se acabar na quarta-feira”. 

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