Diálogos da Fé

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Desigualdade, violência e a responsabilidade de cada um

Que ser humano sou quando pulo por cima de um sem-teto deitado na calçada? Quando só entendo um problema se ele me atinge diretamente?

Desigualdade, violência e a responsabilidade de cada um
Desigualdade, violência e a responsabilidade de cada um
Sem-teto em São Paulo
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Tenho boas lembranças do Brasil. Testemunhei amizade, sinceridade e companheirismo. Uma das duas lembranças de que não vou me esquecer até morrer é do Brasil.

Numa manhã eu andava pelas calçadas da Avenida Paulista. A rua estava lotada de gente apressada para chegar ao trabalho a tempo. Cheguei a um ponto onde todos na minha frente pulavam. Olhei e vi que alguém dormia no chão. Era um morador de rua, desempregado, sem roupa e faminto. Seu corpo se estendia pela calçada. Parei chocado. Não pude pular por cima dele, nem pude passar ao lado. Pela primeira vez presenciei uma situação como essa. Depois, me vi obrigado a passar por cima dos pés dele e a continuar o meu caminho. A cena ficou, porém, gravada na minha mente.

Nós, que passávamos por aquela calçada, havíamos tomado café da manhã, vestíamos roupas bonitas, penteamos os cabelos na frente do espelho. Passávamos por cima ou sobre os pés de um ser humano que não tinha colchão para dormir nem pão para comer. E vestia uma roupa rasgada.

Quem era? A mãe, o pai, o irmão ou um parente de algum de nós. Não apenas os moradores de rua, mas aqueles que roubam, aqueles que assaltam, quadrilhas de drogas e quem vende seu corpo também são parentes de alguém. Quantos problemas temos e quantos foram esmagados por situações deste tipo?

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Pulamos por cima daqueles que dormem na rua para não machucar ou prejudicar ninguém. Damos todo o nosso dinheiro para aquele que aponta a arma enquanto andamos na rua ou estamos parados no farol. Construímos muros gigantes e instalamos sistemas elétricos em torno de nossas casas e prédios para prevenir o “mal”. Além disso, instalamos sistemas de câmera de segurança. Isso também fica insuficiente e contratamos guardas. Cada vez mais gastos.

Em uma manhã, nos levantamos com uma notícia: descobrimos que alguém que admiramos foi detido por acusações de corrupção. Um indivíduo muito respeitado roubou muito mais dinheiro de uma só vez do que um assaltante poderia roubar na sua vida inteira.

De um lado, há malas de dinheiro, de outro, famintos na rua. De um lado, quadrilhas que fazem tudo para assaltar e roubar, de outro, gente a gastar dinheiro para se proteger.

Todos são seres humanos. São os nossos filhos, cujo nascimento esperamos com muita ansiedade, compramos o primeiro brinquedo com um carinho imenso e comemoramos o aniversário com muita felicidade. Como aquela criança se tornou ladrão, assaltante ou corrupto? Onde estávamos enquanto aquele nosso filho que criamos com canções perdeu os laços com a vida e caiu nas ruas?

O número de moradores de rua não é pequeno, mas o número de templos também não é. O número de desempregados igualmente não. O número de assaltantes e ladrões não é pequeno, assim como o número de desperdício cometido para instalar a segurança.

O Alcorão diz que teremos apenas o fruto do nosso trabalho. E diz também que se enfrentamos muitos problemas, temos o potencial para resolvê-los.

Será que a sociedade seria assim se tentássemos resolver os problemas em vez de tentar nos proteger deles? Infelizmente, não nos importamos com os problemas até que eles cheguem a nós e se tornem “nossos” problemas.

Por que será que aquele sem-teto dormia na calçada da Avenida Paulista, enquanto muitos dormiam tranquilamente em suas casas? E por que continuava a dormir enquanto todo mundo pulava por cima dele?

Parecia querer provocar uma reflexão. Mas parece que não o ouvimos, não percebemos e continuamos o nosso caminho pulando por cima, com a desculpa da pressa.

Diz-se que os problemas se iniciam no ser humano e nele são resolvidos. Desta forma, que ser humano sou, que pula por cima de quem dorme na calçada? 

Tradução: Atilla Kus Revisão: Mustafa Goktepe e Gabriel Ribeiro

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