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Deixem a Bíblia fora disto!

Deus não credencia chacina, licença oficial para matar, ‘tiros na cabecinha’, ‘morte na rua igual barata’

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No próximo domingo 8, o segundo de dezembro, comunidades evangélicas tradicionalmente celebram o Dia da Bíblia. Desde 2001, a data passou a fazer parte do calendário oficial do Brasil, por meio da Lei n. 10.335, de autoria do então deputado federal Eber Silva (PST-RJ), evangélico, pastor da Igreja Batista. Nem vamos tocar no fato de uma lei como esta ser promulgada em um Estado laico. Vamos aproveitar a oportunidade e transformar o Dia da Bíblia numa reflexão sobre o valor deste livro sagrado para cristãs e cristãos e condenar os abusos que têm sido cometidos em nome dela no tempo presente.

A Bíblia é um conjunto de escritos com belíssimas narrativas, ensinamentos, leis sociais, poesias, produzidos por pessoas de diferentes origens (a maioria delas muito simples), em distintas épocas e locais. É uma variedade de abordagens que tem como tema a ação libertadora de Deus na história, como Criador do mundo, e sua revelação significativa: a pessoa de Jesus de Nazaré.

Uma das características mais interessantes dos textos bíblicos é que eles não descartam as contradições humanas: estão todas ali nas situações mais distintas, registradas a partir de diferentes formas de interpretar a fé e a vontade divina. Por isto há quem critique a existência de contradições na Bíblia. Sim, há, e aí está a beleza de seu conteúdo. A crueza das contradições humanas e a consequente tentativa de manipular Deus para que assuma “um lado” estão lá.

Por exemplo: os que desprezavam estrangeiros e acreditavam que o povo de Israel e de Judá não podia se misturar com quem não era parte dele, escreveram textos como o livro de Neemias. Já quem achava que todos são criação de Deus, seus filhos e filhas, e que não há distinção para Deus que a todos vê e ama igualmente, escreveu diferente, como os livros de Rute e de Jonas. Outro exemplo são as duas formas de narrar a história da Criação do mundo e dos seus habitantes, contidas no mesmo livro de Gênesis. É preciso, portanto, fazer uma leitura responsável dos textos bíblicos, coerente com estes contextos e entender quem escreveu, quando, por que e daí buscar a mensagem que pode ser tomada no nosso tempo e lugar.

Porém, com toda esta diversidade de perspectivas, interpretações e gêneros literários, há um ponto comum: o amor de Deus pelo mundo, e a revelação de sua vontade nas palavras e ações dos profetas, realizadas na pessoa de Jesus. Quando há dúvida entre um ou outro texto mais controverso ou “incoerente”, cristãos coerentes sabem que é nas palavras e atitudes atribuídas aos profetas e a Jesus que se encontram os pontos centrais de orientação para se viver a fé de forma coerente e comprometida.

E é neste ponto que é preciso reconhecer ser inconcebível atrelar o conteúdo da Bíblia com a defesa de posições, opiniões e pautas como a política do “olho por olho, dente por dente”, a que a população brasileira, especialmente a mais empobrecida, tem sido submetida.

Toda e qualquer afirmação que venha de políticos, de líderes religiosos e de pessoas comuns fazendo uso da Bíblia para defender o “fim da criminalidade”, no apoio a ações do Estado e de milícias com a eliminação de “pessoas indesejadas” (moradores das periferias, das ruas, população negra) é blasfêmia. São diabólicos os argumentos de que “Deus está no controle”, que “Deus está acima de todos” e que mortes têm seu lugar pois “marginais transformaram as ruas em uma versão moderna de Sodoma e Gomorra”.

A pauta do amor de Deus pelo mundo, encarnado em Jesus, é justiça, amor e misericórdia. É a preferência aos mais fracos chamados nos Evangelhos de “pequeninos”: os pobres, as crianças, as mulheres, os desprezados, os presos, os estrangeiros. É uma ética que rechaça e enfrenta a violência, a desigualdade, a acepção de pessoas.

Justamente o contrário da necropolítica, das ações oficiais que se pautam pela morte e pela eliminação dos indesejados sociais. Já havia muitos exemplos dela desde o início do ano: do recorde de mortes praticadas por policiais no Estado do Rio de Janeiro em 2019 (1.546 até outubro, número maior do que o recordista 2018), das 25 crianças e adolescentes assassinados em conflitos que envolveram agentes do Estado nas periferias do Rio de Janeiro de janeiro a outubro passado. Os números de São Paulo são proporcionais aos do Rio, segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública, com duas a cada dez mortes no Estado sendo cometidas por policiais. O relatório do Fórum cita estudo que afirma serem estes números compatíveis com “sérios indícios de execuções e uso abusivo da força”. O caso desta semana em Paraisópolis, periferia de São Paulo, agudiza estes números e a indicação do estudo citado no relatório.

Quem se diz seguidor do Deus que é todo Amor não pode ter na boca, nem nos dedos em um teclado, palavras que apoiem este tipo de governança, muito menos usando a Bíblia. Deus não credencia chacina, licença oficial para matar, “tiros na cabecinha”, “morte na rua igual barata”. A própria Bíblia fala deste tipo de (in)fiel: “Conheço as tuas obras, que tens nome de que vives e estás morto” (Apocalipse 3.1).

Há cristãos e lideranças que não concordam com toda esta violência que usa o nome de Deus. Uns, como o seu silêncio e omissão tornam-se apoio e promoção destas posturas corruptoras do Evangelho. Outros, porém, têm sido fiéis ao Evangelho e feito oposição às políticas de morte e seus apoiadores e chegam a ser perseguidos.

Em homenagem ao Dia da Bíblia, que haja arrependimento e busca de alcance das palavras de Jesus registradas no Evangelho: “Felizes os que ouvem a palavra de Deus e a praticam” (Lucas 11.28).

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