Diálogos da Fé

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Como as mulheres evangélicas podem salvar o Brasil do bolsonarismo

Os números mostram que os evangélicos e evangélicas descontentes com Bolsonaro podem não ir às urnas. Esse é o momento de ganhar os corações das mulheres

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Foto: Pixabay Foto: Pixabay
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Eu gosto de uma expressão dos contadores que diz: “os números não mentem”. Ora, uma eleição sempre é marcada por muitas pesquisas, muitas prospecções e interpretações dos dados. Como pesquisadora de religião, especificamente do segmento evangélico feminino negro, tenho acompanhado dados das eleições desde 2014, uma vez que o grupo evangélico mostrou considerável relevância nas últimas eleições. Mesmo em 2014, quando ainda havia um certo apoio ao PT por parte deste grupo, as bases evangélicas já estavam inflamadas em defesa da família, da moral e dos bons costumes em um afã antipetista. 

O voto dos mais pobres, especificamente os evangélicos, migrou a partir de 2014 para a direita nas camadas mais populares, após quase uma década e meia 2002 votando em peso no PT para a presidência. Em 2018, olhando para os evangélicos como um monolito, as mídias anunciaram o famigerado “voto evangélico” – uma tese que não se sustenta quando olhamos para a diversidade deste grupo religioso

Os números não mentem, e são eles que vão nos ajudar a entender que, entre os evangélicos (mas não só), as mulheres sempre foram o grupo mais resistente ao discurso reacionário apoiado no antipetismo.

Em 2014, segundo o DataFolha, 41% das mulheres votaram em Aécio, 46% em Dilma e 12% votaram branco ou nulo. Em 2018, segundo o mesmo instituto, 42%  das mulheres votaram em Bolsonaro e 41% em Haddad e 18% nulo ou branco. E esta é a primeira lição que os números nos mostram: as mulheres não  necessariamente para o bolsonarismo, mas deixaram de votar. Entre elas, os votos nulos e brancos aumentaram em 6%.  

Dois pontos são chaves: a vida das mulheres e a vida da família

Ainda comparando essas duas pesquisas, mas na seara evangélica, nota-se primeiramente uma mudança no método de pesquisa do Datafolha. Em 2014, o instituto dividia o segmento religioso em “evangélicos pentecostais” e “evangélicos não pentecostais”. Em 2018,  contudo, todos foram classificados apenas como “evangélicos” – o que reforçou com o imaginário que criou o bloco monolítico do voto evangélico, no qual a esquerda embarcou feito um “patinho”. 

Pois bem, voltemos  aos números. Em 2014, no segmento evangélico pentecostal, 44% votaram em Aécio, 43% em Dilma e 13% nulo ou em branco. Já os não-pentecostais votaram 60% em Aécio, 30% em Dilma e 10% nulo ou em branco. Em 2018, cuja junção que não nos permite comparar diretamente estes dados com o de 2014, 59% dos eleitores identificados como evangélicos votaram em Bolsonaro, 26% em Haddad e 14% nulo ou em branco, sugerindo uma leitura de um voto monolítico. Todavia, não sabemos se o grupo pentecostal, mais feminino e pobre, de fato votou em Bolsonaro, ou apenas deixou de votar. 

Sabemos que os evangélicos pentecostais são a fatia mais pobre dentre todos os segmentos evangélicos. E eles se abstiveram mais em 2014 que os não-pentecostais. Em 2018, os nulos e brancos da categoria “religião evangélica” chegaram a 14%. Além disso, dos 20,3% que não foram às urnas, pelo menos 30% se identificaram como evangélicos. 

Foto: Alan Santos/PR

Nessa rápida indicação de números (o ideal seria ainda mostrar a diferença entre escolaridade, renda e região), vemos que não há homogeneidade de voto em grupo algum. E que ser evangélico não se sobrepõe a ser mulher e pobre, por exemplo. 

Temos que pensar na diversidade dos blocos religiosos, principalmente o evangélico. Os próprios dados de 2014 mostram que os pentecostais votam mais à esquerda do que os não-pentecostais. Entre os pentecostais estão, por exemplo, as Assembleias de Deus, Evangelho Quadrangular e Deus é amor, denominações muito grandes e presentes em muitas regiões do país, por isso diversas. 

Na semana passada, o Datafolha divulgou dados que indicam uma polarização evangélica entre Bolsonaro e Lula. No primeiro turno, 36% pretendem votar em Lula, contra 39% no atual presidente. No segundo turno, os evangélicos que votariam em Lula somam 45% – contra 58% da média nacional. 

Ou seja, não há unanimidade entre os evangélicos, e portanto não poderia haver um voto evangélico. As pessoas votam conforme o momento histórico que vivem. Em 2018, votaram na onda do antipetismo, em 2018. Agora, votam em meio a uma crise econômica de proporções bíblicas. Mas faz-se necessário um alerta: não votar em Bolsonaro não significa votar em Lula. 

Entre os evangélicos (mas não só), as mulheres sempre foram o grupo mais resistente ao discurso reacionário apoiado no antipetismo

A abstenção e os votos nulos e brancos, acredito, tendem a aumentar, pois não há uma identificação do segmento evangélico com a esquerda que se apresenta no atual cenário. Os evangélicos e evangélicas descontentes com Bolsonaro podem não ir às urnas. Esse é o momento de ganhar os corações das mulheres evangélicas, que são de fato a base do segmento evangélico, no Brasil.   

Não basta apenas conversar com os mesmos líderes religiosos com os quais o PT fez aliança outrora, urge a necessidade de se conectar com as mulheres evangélicas, sobretudo nas periferias. 

Esta mesma pesquisa Datafolha mostrou que Bolsonaro perde entre mulheres das mais distintas classes sociais. E que elas demandam políticas públicas que defendam seus direitos (políticos, no trabalho, sexuais e reprodutivos). A maior insatisfação, contudo, diz respeito aos direitos sociais (moradia, trabalho e renda, educação, saúde e segurança).  E é nesta demanda por direitos sociais que as  mulheres evangélicas se encontram, em sua maioria. 

As pautas morais fazem parte do entendimento da mulher religiosa em relação ao mundo, mas não são as únicas perspectivas que a ela leva em consideração para tomar suas decisões. Estamos falando de 52% da população, as maiores responsáveis pelo cuidado e, portanto, as que voltaram da feira, do mercado e açougue com as sacolas vazias. 

Foto: Janine Moraes/The Tricontinental

Quando converso com uma mulher evangélica da periferia da minha cidade e pergunto sobre o discurso armamentista do presidente,  ela o repudia. Sabe o porquê? Porque o filho dela também morre por meio das balas “perdidas”; ela também é vítima ou viu alguma mulher ser vítima de ameaça por arma, e com certeza já viu um feminicídio em sua comunidade. 

A cada três mulheres, duas votam em Lula. O bolsonarismo está atento a isso. A figura de Michelle Bolsonaro e muitas pastoras – espalhadas nas mais diversas regiões do Brasil – se colocarão na tarefa de conquistar o eleitorado feminino evangélico para o atual presidente. E elas vão falar sobre o calcanhar de Aquiles da mulher evangélica:  a família. Há um medo de que um possível governo de esquerda possa ensinar as crianças tudo aquilo que muitas famílias lutam para afastar de seus filhos: sexualidade, legalização de drogas, dentre outras pautas progressistas que podem fazer temer as mães que oram diuturnamente para que seus filhos não se afastem da igreja.  Principalmente as mães solo, que em maior vulnerabilidade avistam na igreja um porto seguro para que seus filhos “não se percam” na criminalidade das periferias. 

Nós temos que nos esforçar para transmitir tranquilidade para as mulheres evangélicas. Dizer para elas que suas comunidades de Fé estão protegidas pelo Estado Laico, que poderão ensinar suas filhas e filhos sobre sua religiosidade e crença. Mas isso não bastará para que as mulheres que se abstiveram em 2018, ou que votaram branco ou nulo, sigam para as urnas para derrotar Bolsonaro.

Dois pontos são chaves: a vida das mulheres e a vida da família. Nosso desafio, então, é mostrar para as mulheres o que são seus direitos. Como o discurso bolsonarista segundo o qual a mulher “deve mudar sua postura” afeta diretamente a vida dela. Como os cortes nas políticas públicas para mulheres fazem com que elas não tenham papanicolau ou contraceptivo nas UBS. Ou, ainda, que não haja programas de geração de renda e trabalho, distribuição de terras e programas de moradia.

Em resumo, mostrar como o discurso moralista de Bolsonaro faz com que a vida seja muito pior, porque ele simplesmente parou de investir nos programas sociais que melhoram a vida dela e de toda a sua comunidade de fé.

Não temos que fazer política religiosa, temos que fazer política que melhore a vida das pessoas religiosas

Por outro lado, também não podemos nos desviar do assunto família. Minha sugestão? Fazer peças publicitárias que mostrem que família só está protegida quando cada ente familiar tem seus direitos garantidos. Dizer isso, com estas palavras. As igrejas estão cheias de famílias fora do “padrão”: mães solo, tias que criam sobrinhos, avós que criam netos, irmãs que criam irmãos menores etc. E a famigerada “família de bem”, é uma realidade quase inexistente nas periferias. Inclusive, muitas famílias são destruídas pela própria violência do Estado nas comunidades. 

Proteger a moralidade da família não garante creche e escola para as crianças; trabalho e renda; universidades para a juventude e moradia. E como uma família pode se manter sem o básico para dignidade? Então, proteger a família é garantir os direitos básicos do artigo quinto da Constituição.

Dá para fazer isso? Dá. Tenho ido a comitês populares e falado exatamente essas palavras para as mulheres. Tenho percebido uma boa aceitação. Minha tese é de que, por este caminho, podemos convencer as evangélicas que desistiram de votar em 2018, a votar contra Bolsonaro em 2022. 

Não temos que fazer política religiosa, temos que fazer política que melhore a vida das pessoas religiosas. Principalmente a das mulheres negras, que foram as que mais sofreram com o governo Bolsonaro. Sem fugir da delicadeza da conversa com esse segmento, que tem na igreja seu lugar de convívio e acolhimento. Muitas, é verdade, preferem não votar a que votar “contra a igreja”. Mas as pesquisas mostram que as mulheres evangélicas são o grupo mais aberto neste segmento para o diálogo.

São as mulheres que fazem todo o trabalho não remunerado do cuidado em suas casas e nas igrejas. Elas sabem que o “culto do quilo” – arrecadação de alimento nos cultos evangélicos – está mais escasso. Sabem que a ajuda para comprar remédio das pessoas doentes em suas comunidades está curta. Que a cantina do pós-culto quase não vende. Que as pessoas estão com fome e desnutridas dentro das igrejas. 

Elas sabem que suas vidas estão mais difíceis, nós temos que transmitir para elas a segurança que o Estado Laico oferece: a de que não deixarão de ser evangélicas por imposição do Estado, e que a única ameaça que afeta suas vidas, hoje, é Bolsonaro continuar presidente do Brasil

 

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