Diálogos da Fé

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Ciência e fé, desafios de um pai de santo antropólogo

Quais caminhos deve percorrer um pesquisador que estuda sua própria cultura sem perder a objetividade do trabalho científico?

Máscaras africanas
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O estudo de religiões de matrizes africanas é sempre desafiador, principalmente para um iniciado. Como praticante e sacerdote do Candomblé e ao mesmo tempo pesquisador, tenho me deparado com uma série de questões cujas respostas nem sempre são fáceis.

Superar a noção de que a ciência deve ser neutra talvez tenha sido o maior de todos os desafios, mesmo porque, em algumas circunstâncias, colocou em xeque, inclusive a possibilidade de financiamento da pesquisa. Mas o trabalho deve ser sério e profundo.

Pensar o colonialismo europeu nos séculos XIX e XX, por exemplo, contribuiu para uma melhor compreensão das bases de poder presentes até hoje nas relações de dominação de uma nação sobre outra.

Nos casos da África e da Ásia, essa noção de colonialismo permite entender muitos dos conflitos, guerras civis, pobreza e desigualdade que estruturam diversos países, bem como o racismo, a intolerância e o fundamentalismo religioso presentes em sua organização social e política.

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Perceber que a colonização ainda vigora, seja por meio da penetração financeira, da força do dinheiro de grandes bancos e empresas, seja pelos costumes adquiridos por contingências de governos absolutos ou imperialistas, mostra o quanto as políticas de expansão desrespeitaram culturas e dizimaram não só povos inteiros, mas a possibilidade de ver e governar de outras maneiras.

Nesse contexto colonial, pode-se dizer que surgiram os primeiros sinais de algumas ciências que só no fim do século XIX se desenvolveriam de fato, como a Antropologia e a Etnografia. Digo isso, por ver na Carta de Caminha, por exemplo, traços de um trabalho antropológico e etnográfico ou, ao menos alguns dados que mais tarde serviriam para a análise da formação de um povo. Contudo, são as abordagens evolucionistas que realmente inauguram a possibilidade de um novo campo de saber.

O evolucionismo reflete o pensamento vigente no fim do século XIX e início do século XX, mostrando que, de certa forma, a própria Antropologia se insere na lógica colonialista, o que ficaria muito mais evidente com os estudos, métodos e a própria postura e posição de Bronislaw Malinowski.

O grande legado do Funcionalismo, que até hoje se pratica na Antropologia, foi o trabalho de campo. Sem a pesquisa etnográfica, muito do que se conhece hoje acerca da humanidade e da cultura simplesmente não seria possível. A análise não muito acurada e por vezes superficial daquilo que se descrevia dava margem a uma série de equívocos.

Não se pode, contudo, desprezar a grande contribuição de Malinowski, Evans-Pritchard ou Radcliffe-Brown para o avanço da Antropologia e do trabalho etnográfico (seria como jogar a criança fora com a água do banho).

Nos estudos que desenvolvo, o trabalho de campo é fundamental. Participar dos rituais e compartilhar as vivências de um terreiro de candomblé, levantando, transmitindo e analisando com objetividade dados e informações sobre essa religião, tem sido um desafio interessante, pois definir o lugar do pesquisador em relação a sua própria pesquisa e falar de dentro para fora, de forma crítica, sem se perder na linha tênue que separa ciência e fé, valoriza o trabalho e respalda os resultados.

Isso quer dizer que a lógica da colonização pode ser alterada. Em outras palavras, é preciso mostrar que setores da população muitas vezes classificados como dominados (entre eles o povo negro no Brasil) são absolutamente capazes de construir, contar e analisar sua história e cultura.

Para tanto, as fontes históricas e/ou teóricas não podem ser apenas documentos arquiváveis e suscetíveis de datações. Por isso, a contribuição da Antropologia é fundamental, uma vez que considera outros registros, como o mito e o ritual, que certamente se inserem na noção de fato social total elaborada por Marcel Mauss.

Aliás, em Ensaio sobre a Dádiva, ao aprofundar a análise sobre o Kula, Marcel Mauss mostra que há instrumentos teóricos no interior do grupo étnico-cultural. Portanto, os estudos sobre religiões tradicionais, sobretudo os realizados por iniciados, demonstram que uma Antropologia que parte do próprio povo pode ter um valor extraordinário, como avaliza Clifford Geertz.

Roger Bastide também fala dessa necessidade nas pesquisas sobre candomblé, assegurando que os trabalhos e monografias realizados pelos “de dentro” constituem a mais séria base para o conhecimento.

Traduzir e interpretar as culturas por meio das informações fornecidas por seus integrantes possibilita um caminho mais seguro. Contudo, é bom que se diga que o pertencimento do pesquisador à cultura ou comunidade que estuda não se deve confundir com engajamento político. Fazer um estudo científico sem panfletagem é possível e necessário.

Esse, de certa forma, foi o exemplo de Georges Balandier e Maurice Godelier. Não que pertencessem aos povos que estudaram, mas a possibilidade de forjar uma Antropologia Política e uma Antropologia Econômica, com base, inclusive, em pressupostos marxistas, poderia seguramente ser considerada uma forma de envolvimento com o tema, o que comprometeria a objetividade de suas análises.

Ao contrário, Godelier e Balandier trataram de diversos aspectos da vida política e econômica e contribuíram para uma ampliação do campo de estudo e análise da Antropologia. Um bom exemplo é a definição de colonização, não mais como estava inscrita desde os tempos das grandes navegações, mas como um conjunto de características com as quais os governos exercem o poder.

Interpretada como um modo de gestão, a colonização ataca primeiramente a forma administrativa, configurando-se, em certa medida, como uma cirurgia social com sérios impactos, inclusive nas relações subjetivas. A colonização instaura e propaga a desigualdade, tornando-se, portanto, um instrumento indispensável ao sistema capitalista.

A colonização ainda trabalha na dimensão da cultura, do imaginário. Desta forma, a ideia de dependência, somada à desigualdade de poder, gera o que Balandier chamou de colonialismo generalizado. Essas relações de desigualdade, dominação e submissão continuam a balizar as relações internacionais, sobretudo entre países ricos e países pobres.

As relações entre poder e religião e a intervenção do sagrado no modo de gestão de algumas sociedades denotam o quanto instituições políticas e econômicas estão imbricadas a fatores religiosos.

O projeto de poder das igrejas evangélicas no Brasil e os abusos praticados em nome da fé, sobretudo os casos cada vez mais recorrentes de intolerância e racismo, mostram que nas sociedades modernas a religião continua a operar uma série de instrumentos de poder e influência com clara intenção de manter os privilégios de um grupo em detrimento do outro.

Ou seja, a lógica colonialista nunca esteve tão evidente, principalmente quando pensamos que a existência do “outro” depende da concessão do grupo dominante.

Godelier vai no mesmo sentido e, passeando por fórmulas há muito repetidas na Antropologia, acaba por introduzir novos conteúdos de análise. As representações e o imaginário podem se configurar como ideologias que sustentam a organização econômica de certas culturas. Isso quer dizer que mesmo a realidade mais concreta é permeada por uma base ideológica que se mantém por meio dos símbolos, ritos e mitos, ratificando o modelo de administração e governo de uma população.

A capacidade de reinvenção e ressignificação presente no humano faz uma religião tradicional, de origem tribal, quase selvagem, primitiva (como muitos ainda definem), conviver e interagir com as especificidades da sociedade urbano-industrial ou pós-moderna. O candomblé se adequou, mas sua visão de mundo ainda encontra na velha África (ao menos do ponto de vista ideal) seu maior paradigma.

Nesse contexto, uma boa pesquisa de campo não pode desconsiderar todas as alterações e transformações que a sociedade sofreu e sofre ao longo dos últimos anos. Um novo movimento e uma nova postura de pesquisadores, incluindo os que saem do terreiro e vão para a academia, lança novas luzes sobre velhos conceitos. Uma Antropologia dinâmica é o que os autores citados parecem propor, ainda nos cabe o desafio de construí-la.

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