Diálogos da Fé

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Carnaval, uma festa do corpo de Cristo

Se o Carnaval nasce no terreiro, se os Ogans saíram das giras, para as baterias da escola de samba, o que justificaria a necessidade de um bloco gospel?

Carnaval, uma festa do corpo de Cristo
Carnaval, uma festa do corpo de Cristo
O Bloco Ide, intitulado o primeiro bloco gospel da Capital paulista, trouxe para as ruas o batuque afro diaspórico e a mensagem cristã. Foto: Reprodução
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Dos poemas de Adélia Prado, “A festa do Corpo de Deus” é o que mais gosto. De beleza escancarada, nos revela o corpo do Cristo Crucificado. Especificamente esse trecho, me parece muito próprio para esse março carnavalesco:

[…]

E  teu corpo na cruz, suspenso.

E teu corpo na cruz, sem panos:

olha para mim.

Eu te adoro, ó salvador meu

que apaixonadamente me revelas

a inocência da carne.

[…]

O Deus Encarnado tem um corpo, e o povo tem cultura. Escrevo sobre Carnaval e o Corpo de Cristo, justamente por uma novidade que apareceu na folia paulistana que me trouxe muitas reflexões sobre corpo, fé, colonização e apropriação cultural. O Bloco Ide, intitulado o primeiro bloco gospel da Capital paulista, trouxe para as ruas o batuque afro diaspórico e a mensagem cristã. Se o Carnaval nasce no terreiro, se os Ogans saíram das giras, para as baterias da escola de samba, o que justificaria a necessidade de um bloco gospel?

A ideia de “roubar” a cultura, de “apropriação cultural”, não me parece própria para essa análise. Como antropóloga e estudiosa de raça, gênero e igrejas evangélicas, fui ao desfile com algumas hipóteses. A primeira dizia respeito sobre a cor das pessoas que comporiam o bloco evangélico; a segunda sobre a relação destas pessoas com o samba.

Quando cheguei ao lugar da concentração do bloco, na favela do Sapé ( Zona Oeste Paulista) e vi a composição do bloco, confirmei a primeira hipótese: um bloco majoritariamente negro e masculino. A segunda hipótese é que essas pessoas teriam uma relação prévia com o samba, antes de suas conversões –  e eu também estava certa.

Imagéticamente, o bloco negro evangélico que rodou as ruas da favela do Sapé, em nada se parecia com os blocos extremamente embraquecidos que circularam pelas ruas do Butantã. Não só a localização do bloco era periférica, assim como os participantes: negros e periféricos. Havia meninos e adolescentes de bermuda e chinelos que batucavam os instrumentos do bloco.

Sob a insígnia de “Ei você aí, trago boas novas”, o bloco cantou louvores em ritmo de samba-enredo. A recepção das pessoas do bairro foi interessantíssima: acenavam, cantavam e batiam palmas. Algumas, estendiam as mãos quando o bloco orava – foram três paradas para orarem o Pai Nosso, além de outras pessoas que se aproximavam do grupo para fazerem pedidos de oração.

Participar desse bloco me fez refletir muito sobre colonização religiosa e apropriação cultural. Afinal, o que seria apropriação: vários brancos de classe média cantando os enredos clássicos de Carnaval, ou vários negros evangélicos cantando musicas gospel em ritmo de bateria de escola de samba?

As relações inter-religiosas são complexas e não podem ser analisadas com leviandade. Se outrora, se acreditou que negros se esconderam atrás de santos católicos para exercer sua fé originária. Hoje, podemos entender que negras e negros fizeram uma leitura de catolicismo e do protestantismo. Uma leitura que transformou as práticas religiosas.

Os membros do bloco eram pessoas convertidas de várias denominações pentecostais e neopentecostais – haviam ex-integrantes da Igreja Bola de Neve, membros da tradicional O Brasil para Cristo, além de igrejas independentes, como a Igreja Tribos (localizada no Rio Pequeno). Parte do grupo se converteu quando já tinham uma estrada no samba, alguns eram inclusive ex-participantes da Escola Império da Casa Verde.

Voltando à Adélia Prado, se a Igreja é o corpo de Cristo e ela sai às ruas para celebrar o carnaval, o Carnaval se torna a festa do corpo de Deus. Os intercâmbios culturais propiciam a criação de estratégias de socialização. O protestantismo quando encontra a cultura afro-diaspórica não é mais o mesmo. Evidentemente, não ignoro a desproporcionalidade de poder e violência entre os grupos de colonizadores e das vítimas da colonização. Contudo, não podemos ignorar a ação e protagonismo de grupos negros no exercício de sua religiosidade evangélica.

Por fim, refletir sobre a cultura gospel, como eu trouxe no texto do mês passado, se faz necessário para que entendamos o porquê do fundamentalismo religioso ser tão aceito nas periferias de nossas cidades. Quem dialoga com a periferia? O bloco Ide mostrou sua capacidade de articulação e de alcançar mentes e corações das pessoas.

E o mais surpreendente, é que não houve discurso de submissão, ou pedido de dinheiro, ou outros jargões da teologia da prosperidade. Eles se conectaram com a humanidade das pessoas daquela comunidade. As pessoas se sentiram vistas e respeitadas. A festa do corpo de Cristo foi às ruas e deu uma aula do que é fazer trabalho de base: é dialogar com a cultura da periferia. Seja no samba, seja na oração.

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