Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

Campanha pelo livre porte de armas é desafio aos cristãos

Prática simples pode se dar no próprio culto cristão, com o descarte de canções e pregações que alardeiam a destruição de inimigos

Tema é grande desafio para quem se embasa em valores cristãos, uma vez que o Cristianismo prima pela paz e a não violência
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Uma pauta forte na campanha eleitoral em 2018 é a defesa do porte irrestrito de armas por cidadãos, qualificados como “de bem”, como forma de superação da crise da segurança pública. É o carro-chefe da campanha de Jair Bolsonaro (PSL), mas é também defendida explicitamente pelos candidatos João Amoedo (Novo) e Álvaro Dias (Podemos).

A defesa do armamentismo individual no Brasil não é bandeira nova. Nos últimos três anos, foram 112 projetos na Câmara dos Deputados que buscam flexibilizar ou por fim ao Estatuto do Desarmamento, de 2003, que proíbe o livre porte de armas por civis e limita as exceções.

Os deputados e senadores contrários ao desarmamento compõem a popularmente conhecida Bancada da Bala. São 35 deputados com carreira policial ou militar (18) e eleitos com financiamento de empresas do setor bélico (17), como a Taurus e Companhia Brasileira de Cartuchos.

A Bancada almeja crescimento nestas eleições, com o alto número de candidaturas de policiais militares e de integrantes das Forças Armadas em todos os estados. Nela estão seis deputados da Bancada Evangélica: Cabo Sabino (Avante/CE), Delegado Francischini (PSL/PR), Gilberto Nascimento (PSC/SP), João Campos (PRB/GO), Major Olímpio (PSL/SP), Onix Lorenzoni (DEM/RS).

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Esta é uma pauta de segmentos políticos de direita e tem conseguido dividir a população, que sofre com a insegurança e o medo. Pesquisa Datafolha de 2017 mostra que há quem creia que armar a população é aumentar ainda mais a violência (56%) e quem pense que a população armada reprimiria a ação de criminosos (42%).

A questão não atinge apenas o Brasil. Dados da Pesquisa sobre Armas Leves e Pequenas, do Instituto de Estudos Internacionais e Desenvolvimento em Genebra (Suíça), em 2016, mostram números alarmantes. De 2010 a 2015, ocorreram 537 mil mortes no mundo (mais de 90% de civis), por homicídios provocados por armas pequenas. O Brasil aparece como o 19º país no ranking mundial. A pesquisa recorre à Organização Mundial de Saúde e mostra também o trágico número de mortes por suicídio: cerca de 800 mil pessoas por ano, com altos índices de mortes relacionadas à existência de uma arma em casa. 

O tema é grande desafio para quem se embasa em valores cristãos, uma vez que o Cristianismo é religião que prima pela paz e a não violência. Afinal, o desejo divino revelado pelos profetas é que “as armas sejam transformadas em relhas de arados e em podadeiras para gerarem vida” (Isaías 2.2-4) e que “os uniformes de combate e as roupas manchadas de sangue sejam queimados como lenha no fogo” (Isaías 9.5).

Jesus segue na trilha dos profetas ao condenar o “olho por olho, dente por dente” e indicar a necessidade de perdão aos inimigos (Mateus 5.38-39). Nesse sentido, qualquer discurso ou ação que atrele o Cristianismo à defesa do uso de armas como solução para a segurança dos cidadãos é questionável.

De 2001 a 2010, o Conselho Mundial de Igrejas promoveu a Década de Superação da Violência. Entre os focos anuais estava o tema “Microdesarmamento: o enfrentamento da proliferação de armas leves e pequenas no mundo”.

Pessoas de igrejas e de religiões não-cristãs de todos os continentes, com a ajuda de especialistas, refletiram que de crianças soldados na Serra Leoa a ataques a tiros em escolas dos Estados Unidos, há um círculo vicioso de vítimas-perpetradores-sobreviventes traumatizados. Isto gera um extraordinário número de tragédias cumulativas e crises públicas mundo afora, dando sustentação à cultura do medo e à justificativa da violência.

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A Rede de Ação Internacional sobre Pequenas Armas (IANSA, em inglês) e a Rede Ecumênica sobre Pequenas Armas (ENSA, em inglês), são redes globais que reúnem organizações de várias confissões religiosas e outras da sociedade civil de mais de 40 países.  Elas buscam atuar diante da “proliferação epidêmica” de armas pequenas, chamando a atenção para as dimensões materiais, éticas, morais, espirituais do problema da livre posse de armas.

Ao participarem da Década de Superação da Violência estes grupos destacaram que a proliferação das armas pequenas é um desafio ao princípio cristão de se rejeitar a vingança como meio de solução de conflitos e do testemunho de fidelidade à busca da justiça, da reconciliação e da paz. As igrejas são desafiadas a atuarem por medidas sociais, econômicas e políticas relevantes e necessárias para a redução da demanda e da dependência de armas pequenas.

Também devem ajudar não só as vítimas e suas famílias mas também os perpetradores de violência com armas, cuja reabilitação demanda um lugar de refúgio, confissão, cura e esperança. Estas práticas incluem a cobrança de políticas de prestação de contas dos produtores e vendedores de armas, causadores indiretos deste mal social, por meio de assistência à recuperação e reabilitação de vítimas da violência armada.

No Brasil, cristãos e cristãs podem aprender destas experiências e desenvolver ações de superação do medo e do sentimento de vingança, pela promoção da paz e da reconciliação. Uma prática simples pode se dar no próprio culto cristão, com o descarte de canções e pregações que alardeiam a destruição de inimigos em troca de uma ênfase em palavras e canções que destaquem as dimensões do amor e da misericórdia, sem perder a sede de justiça.

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