Diálogos da Fé

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Brasil 2018: Precisa-se de humanos

As mídias digitais necessitam com urgência de um choque de humanidade

Ali, Marielle e Marisa Letícia: vítimas da ignorância
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Quando nos referimos ao humano, não ficamos apenas na ideia do homo sapiens (humano sábio) e da humanidade como conjunto dos seres humanos. Consideramos também a ótica da natureza, dos traços diferentes que homens e mulheres tendem a demonstrar, que incluem maneiras de pensar, sentir ou agir, que formam virtudes e fraquezas.

Nesse sentido, referimo-nos ao humano, em nossa vida coletiva, por suas virtudes, como sinônimo de bondade, amor, piedade, coragem, respeito, compreensão para com os outros, especialmente aquelas de fora do círculo de convivência.

Assim dizemos que alguém “é muito humano” para destacar a capacidade que ele tem de simpatia pela realidade de outros, especialmente aqueles em situação vulnerável e ser aberto a compreender o que não é parte do seu jeito de ser. Humanidade é o termo que também usamos para o que é e deve ser cultivado neste sentido por homens e mulheres.

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Quando nos deparamos com situações que mostram o oposto disto, ou seja, crueldade, indiferença ao mal, violência dura e friamente praticada, de forma física ou simbólica, usamos o termo “desumano” ou “desumanidade”.  

Entretanto, há ainda outra qualificação que podemos atribuir àqueles homens e mulheres que vão além do desumano. Quando se mostram desprovidos de sentimentos de respeito, consideração, amor, generosidade, por meio de atitudes que revelam a ausência da identidade humana. Chamamos estes homens e mulheres que não se apresentam como humanos de “inumanos” ou revestidos de “inumamidade”.

Esta reflexão me ocorre por conta deste tempo que vivemos no cristianismo, a Páscoa, o período de 50 dias depois do domingo em que recordamos a ressurreição de Jesus de Nazaré, o Cristo crucificado pelo Império Romano com anuência do poder judaico.

Ainda ecoam nos meus pensamentos que Jesus, depois de um julgamento injusto, baseado em convicções, finalizado por um ‘juiz’ que lava as mãos, depois de receber a pena de morte, de ser torturado, receber na cabeça uma debochada coroa de espinhos e ser pregado com pregos numa cruz de madeira, teve que ouvir do público que se deleitava com a crueldade e a injustiça: “Desce da cruz. Salva-te a ti mesmo”.

Quem, mantida viva a sua identidade humana, não se indigna quando lê ou assiste a uma narrativa deste episódio que mostra tanta inumanidade.

Como não pensar no nosso próprio Brasil. Em agosto do ano passado, o refugiado sírio Mohamed Ali, vendedor de esfihas em Copacabana, no Rio de Janeiro, foi agredido por um homem, com apoio de outros, que derrubou sua mercadoria e gritava: “Saia do meu País. Eu sou brasileiro e estou vendo meu País ser invadido por esses homens-bombas que mataram, esquartejaram crianças, adolescentes. São miseráveis… Essa terra aqui é nossa. Não vai tomar nosso lugar não”. As cenas se encerraram com o agressor entoando: “Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”.

Neste  março, o torcedor do Palmeiras William de Lucca criticou, no Twitter, os cantos da torcida do seu time contra a do São Paulo, carregados de homofobia. Após a repercussão, o jovem deu uma entrevista a um programa de tevê e emocionou o comentarista Walter Casagrande, que fez um desabafo, ao dizer que a dor é parecida de quando ele é ofendido por histórico de dependência química.O que me ofendem nas redes sociais, me chamam de viciado, drogado… Não posso falar nada de ninguém por causa do meu passado. Quem sou eu para falar de alguém se fiquei internado. Eu sofro isso diariamente”.

Em janeiro de 2017, a médica reumatologista Gabriela Munhoz enviou mensagens a um grupo de Whatsapp de antigos colegas de faculdade, confirmando que a ex-primeira dama Marisa Letícia estava no pronto-socorro do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, com diagnóstico de Acidente Vascular Cerebral hemorrágico gravíssimo, prestes a ser levada para a UTI.

Um colega de Gabriela, o médico residente em urologia Michael Hennich, postou, quando ela disse que Marisa não tinha sido levada, ainda, para a UTI: “Ainda bem”. Gabriela respondeu com risadas.

Outro médico do grupo, o neurocirurgião Richam Faissal Ellakkis, também comentou: “Esses fdp vão embolizar ainda por cima”, escreveu, em referência ao procedimento de provocar o fechamento de um vaso sanguíneo para diminuir o fluxo de sangue em determinado local. “Tem que romper no procedimento. Daí já abre pupila. E o capeta abraça ela”, escreveu Ellakkis.

Nesta semana, tomamos conhecimento de um áudio vazado na internet, autêntico, segundo a Força Aérea Brasileira, em que alguém, sem se identificar, diz ao piloto que levava Lula para Curitiba: “Leva e não traz nunca mais”, “manda esse lixo janela abaixo”. O áudio foi curtido e aplaudido por milhares.

Estes comportamentos se assemelham à repercussão da execução da vereadora Marielle Franco há um mês. Houve comoção e movimentos de rua em solidariedade à família e ao povo do Rio de Janeiro, mas houve também expressões públicas que a classificaram como “vagabunda safada” e afirmaram que “teve o que procurou”, entre outras menções inumanas diante da situação dramática.

Estes são exemplos recentes, graves, cujos casos ganharam destaque nas mídias. Poderíamos tratar aqui de muitos outros, com gente simples, como a hostilidade a imigrantes, a homofobia transformada em violência física, o escárnio em relação a quem vive no limite da vida, como moradores de rua, dependentes químicos, indígenas. É alarmante identificarmos entre os inumanos jovens e até crianças.

Torna-se um alívio quando lembramos que ainda há muita gente humana que mostra que a humanidade tem jeito, sim. Vocês, leitores e leitoras, podem exercitar a lembrança de histórias. Precisamos torná-las mais conhecidas e visíveis, e, com isso cultivarmos e alimentarmos as virtudes da humanidade entre nós. Isto tem que ser feito a começar da nossa presença nas mídias digitais: elas precisam de um choque de humanidade.

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