Diálogos da Fé

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As luzes do Natal não podem esconder os Herodes do Brasil

Lá vamos nós para mais um dezembro, tempo de encerramentos, festas, luzes. Um período que se coloca entre a realidade e o sonho, entre o desafio e a utopia, marcado por uma celebração cristã que evoca paz e esperança

As luzes do Natal não podem esconder os Herodes do Brasil
As luzes do Natal não podem esconder os Herodes do Brasil
Créditos: Redes sociais e Arquivo Pessoal
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Essa celebração remonta ao nascimento de Emanuel – termo hebraico que significa “Deus Conosco” –, encarnado no menino Jesus. Ele nasceu de Maria, uma jovem adolescente, desposada por José, no seio de uma família pobre da periferia da Judeia, na Palestina.

Os Evangelhos narram que, em meio ao deslocamento para atender ao censo imposto pelo Império Romano, o casal encontrou dificuldade para conseguir abrigo para o nascimento de Jesus. O parto aconteceu em um curral, rodeado por animais, sem qualquer conforto ou higiene. Sem glamour, mas com uma mensagem poderosa.

Paz e esperança, nestas condições? Mesmo em sua fragilidade, Jesus representava uma notícia revolucionária: Deus se fazia humano por intermédio dele, dependente, fraco e sem conforto. Sua chegada trouxe uma mensagem de humildade, despojamento, reconciliação e indignação frente às injustiças sociais. Ele encarnava a misericórdia e a compaixão.

Mas paz e esperança para quem? Segundo os Evangelhos, para os pobres, marginalizados e excluídos pelos poderes políticos e religiosos. Não é coincidência que as primeiras testemunhas de seu nascimento tenham sido agricultores e pastores, assim como sábios de terras distantes e culturas desprezadas pelos dominantes da época.

A mensagem de Jesus confrontava a lógica da violência e do individualismo. Seus ensinamentos – “Paz na Terra às pessoas de boa vontade”, “os últimos serão os primeiros”, “felizes os que promovem a paz” – apontavam para uma nova forma de viver em comunidade e de se relacionar com Deus e com o próximo, se opondo à lógica da violência, do individualismo e da intolerância.

Mas, como celebrar o Natal e repetir as palavras de paz e esperança enquanto o Brasil enfrenta tamanha violência e injustiça? Como se não bastasse a investigação de um frustrado golpe de Estado sanguinário por militares e os ataques especulativos do mercado financeiro, o noticiário recente nos confronta com episódios hediondos de violência policial em São Paulo: uma criança de quatro anos morta em uma operação policial; um estudante de medicina executado; um jovem negro alvejado com 11 tiros após roubar barras de sabão; e outro jovem atirado de uma ponte por um policial.

Essas tragédias evidenciam a prática da necropolítica, em que o poder decide quem pode viver e quem deve morrer, reforçada por um discurso de limpeza social e vingança. São Paulo, em particular, ilustra bem essa realidade, mas o problema é nacional, com raízes na ditadura militar e intensificado durante o governo Bolsonaro.

Como celebrar o Natal e sua mensagem de paz e esperança com estas imagens diante de nós? Como canta o poeta: … paz sem voz não é paz, é medo! Às vezes eu falo com a vida, às vezes é ela quem diz Qual a paz que eu não quero conservar pra tentar ser feliz?

Para compreender a essência do Natal, é preciso recordar o contexto em que Jesus nasceu. O rei Herodes, citado nos Evangelhos, era um governante violento, aliado aos romanos, que explorava seu povo e eliminava opositores. Ao saber do nascimento de Jesus, planejou matá-lo, mas foi frustrado pelos sábios do Oriente, que evitaram colaborar com seu plano.

Herodes recorreu à mentira (“fake news”) para enganá-los e ter informações do local aonde iam para colocar em prática o seu plano perverso de executar o bebê. Sem conseguir localizar o menino, contudo, ordenou o massacre de todos os meninos de até dois anos em Belém. Maria e José, para proteger Jesus, fugiram para o Egito, tornando-se refugiados.

Essa história ecoa na realidade brasileira. A violência estatal e a dor das famílias que perdem seus filhos para a brutalidade nos aproximam da mensagem original do Natal: uma inversão da lógica de poder e privilégio. Como diz Leonardo Boff, “Só Deus quis ser menino” – frágil, pobre e desprezado, tal como muitos brasileiros.

O jovem atirado de uma ponte em São Paulo foi socorrido por moradores debaixo dela. Esse gesto simples simboliza o verdadeiro espírito do Natal: a solidariedade entre os excluídos, que contrasta com a indiferença e crueldade de quem detém o poder.

O Papa Francisco, em 2013, ao visitar Lampedusa – rota de refugiados no Mediterrâneo, onde dezenas de milhares de pessoas morreram –, lançou um chamado que permanece atual: “Vamos pedir ao Senhor para retirar a parte de Herodes que se esconde em nossos corações”.

Que este Natal seja marcado por uma conversão genuína, uma rejeição à violência e à vingança, e uma oposição firme aos “Herodes” do Brasil. Que o Emanuel, Deus Conosco de todos os pobres e desprezados, de todas as religiões e culturas, inspire paz, esperança e aversão a toda violência e ao desejo de vingança

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