Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

As lições dos médicos cubanos

Por preconceito, o Brasil abre mão de profissionais experientes e gabaritados

Estes partirão em breve
Apoie Siga-nos no

Era um misto de euforia e tristeza. Eufórico por pisar pela primeira vez naquele país e tristeza pela saudade do Brasil e por assistir, de longe, a prisão do melhor presidente que tivemos.

Cheguei cedo no escritório. Era meu primeiro dia de trabalho, após atravessar uma imensa avenida, cheia de carros, a maioria de luxo (a desigualdade social é muito parecida com a brasileira), e com muitos vendedores e vendedoras ambulantes, as chamadas zungueiras.

Na rua, elas vendem tudo, de banana assada com ginguba (amendoim) a inseticida (a malária é um problema endêmico). De gravata a controle remoto. É como se estivesse numa grande 25 de março (rua com lojas de comércio popular em São Paulo) a céu aberto.

Leia também:
Como explicar a adesão evangélica ao bolsonarismo?
Pelo fim imediato dos bombardeios ao Iêmen

É também nessa avenida, escondidas atrás dos postes, que as kinguilas trocam (ilegalmente) dólares por kwanza (moeda local). Para chamar nossa atenção, elas fazem um gesto com as mãos (como se chamassem cachorro) e mandam beijos. Os mais desavisados, como eu, tendem a confundi-las com prostitutas.

Quando cheguei no escritório, fui informado que dividiria a sala com o doutor André Kizua. Foi ele, aliás, quem cedeu gentilmente uma mesa em seu gabinete, para que eu pudesse trabalhar nos próximos meses e enquanto estivesse no país.

Fui contratado para desenvolver uma avaliação e um planejamento estratégico para uma organização angolana baseada na fé, que atua fortemente no combate à malária e ao HIV.

Angola é uma bela nação, com desafios parecidos com os do Brasil. É um país africano de maioria cristã e tem aproximadamente 29 milhões de habitantes. Seu nome é uma derivação portuguesa do termo bantu N’gola, título dos reis do Reino do Ndongo existente quando Portugal invadiu Luanda, sua capital, no século XVI.

 Diferentemente do nosso caso, a libertação do domínio português foi alcançada apenas em 1975, depois de uma longa guerra de libertação.

Após a independência, Angola foi palco de uma intensa guerra civil de 1975 a 2002. Cuba sempre esteve presente no país, oferecendo médicos e metodologias em saúde, fáceis e replicáveis.

Kizua é um típico angolano: gentil, afetuoso, sorridente e sempre está vestido com trajes tradicionais africanos. Ele é um médico sanitarista e ginecologista. Protestante, é o responsável pelo departamento de saúde de sua igreja e, portanto, um dos sujeitos da minha avaliação. 

Estudou medicina em Cuba e fez especialização na Alemanha. Foi por intermédio dele que conheci a doutora Constanza, médica sanitarista cubana que vive a 20 anos em Angola. 

Numa de nossas conversas, regada com kissangua (bebida doce a base de milho fermentado), Constanza contou-nos a história da revolução cubana.

Disse que quando aconteceu, a maioria dos médicos fugiram para Miami, Cuba só ficou com três mil médicos e 14 professores, correndo o risco de acabar com a medicina no país.

Houve, no entanto, um investimento muito grande, liderado pelo médico Ernesto Che Guevara, que revolucionou a medicina cubana, reformulando o sistema de saúde e propondo uma medicina preventiva, social e nas comunidades.

A estratégia deu certo e atualmente Cuba tem índices de saúde melhores que aqueles dos Estados Unidos – inclusive os dois países cooperam nessa área, como no combate ao câncer – e é o país com o maior número per capta de médicos do mundo, superando em três vezes a taxa americana.

Com esses índices, Cuba é uma referência para a Organização Mundial de Saúde, mandando médicos para socorrer em catástrofes e epidemias. 

Assim que souberam da ruptura do programa Mais Médicos no Brasil, eles me ligaram. Lamentaram profundamente, pois conhecem a realidade da saúde pública brasileira e sabem da qualidade da formação, técnica e humana, dos profissionais cubanos.

Cuba tem 25 faculdades, todas públicas, de Medicina e uma Escola Latino-Americana onde estudam estrangeiros de 113 países, inclusive do Brasil.

Assim como aqui, a duração do curso em Cuba é de seis anos em período integral. Depois, o estudante deve fazer especialização, que dura de três a quatro anos.

Nós três somos cristãos e lembramos, durante nossa conversa, do alerta de Jesus. “Ai do mundo por causa dos escândalos; porque é necessário que venham escândalos; mas ai do homem por quem o escândalo venha”. (S. Mateus, cap. XVIII, v. de 6 a 11).

Os dois tem acompanhado com tristeza os últimos episódios brasileiros: golpe, ruptura democrática, retirada de direitos humanos e sociais e ascensão da extrema-direita.

Para nós, espiritas, o Brasil atravessa um longo período de transformação, o que chamamos de transição entre um mundo de expiações e provas para um mundo de regeneração em que reinará a justiça social, a paz e a concórdia.

A retirada do programa Mais Médicos foi uma das maiores crueldades que esse governo, que ainda não assumiu, poderia ter feito, deixando mais de 24 milhões de brasileiros sem os médicos cubanos.

Devemos garantir que os mais pobres, os mais vulneráveis (idosos, mulheres, crianças, população negra, indígena, ribeirinha, LGBT+, baixa renda), não sofram ainda mais com a maldade humana.

O nosso mais profundo agradecimento aos médicos cubanos.

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.