Diálogos da Fé

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As diferenças entre candomblé e umbanda

Embora possuam elementos em comum, são duas religiões muito distantes no que diz respeito a seus rituais e concepções de mundo

Há muita ignorância sobre as religiões afro-brasileiras
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Como estabelecer diferenças entre aquilo que parece igual? Como contrariar o senso comum? Desvendar a religiosidade afro-brasileira é uma forma de demonstrar a diversidade cultural que o povo negro foi capaz de construir neste País.

O contato com outra realidade impôs a necessidade de submeter seus sistemas simbólicos a processos de releitura, de ressignificação. Isso contribuiu para a formação de um vasto conjunto de modalidades religiosas, que acabaram se dividindo em duas vertentes principais: o candomblé e a umbanda.

São religiões distantes tanto no ritual quanto na teogonia, mas muito unidas na luta contra o racismo e a intolerância religiosa, dos quais são constantemente vítimas.

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Muitos, além de confundir umbanda com candomblé, confundem ambas com o espiritismo. Inclusive, no fim do século XIX e início do século XX, quando a cultura negra sofreu forte repressão, essas religiões de matriz africana eram chamadas de “baixo espiritismo” e a inserção do curandeirismo e charlatanismo no Código Penal Brasileiro visava coibir a ação de pais e mães de santo.

O processo de sincretismo, isto é, a fusão, a interpenetração de culturas diversas, explica, em geral, o surgimento das religiões afro-brasileiras e, em particular, a formação da umbanda.

Enquanto fragmento de um sistema cultural, a religião não pode ser compreendida desassociada da história do povo que a criou. Portanto, é preciso rever a maneira como o elemento negro foi inserido no contexto brasileiro e as estratégias que utilizou para preservar ou reinventar suas crenças.

O candomblé é uma religião que surge no Brasil, mas os componentes culturais dos diferentes grupos étnicos africanos que conviveram no período da escravidão fornecem a base de seus rituais, ou seja, trata-se de uma religião afro-brasileira.

No candomblé, o mundo não é pensado a partir de oposições. As contradições, se existem, são concebidas de maneira indivisível e não há uma divisão maniqueísta e excludente entre bem e mal.

As divindades do candomblé são os orixás. Possuem virtudes e defeitos e expressam muitas vezes a liberdade e o prazer de viver. Nos terreiros, as relações fornecem um modelo de comportamento decorrente de um sistema de significações formado na diáspora, com uma ética particular que encontra na reciprocidade seu principal fundamento.

Ao reconstituir a família e privilegiar a organização comunitária, o candomblé devolveu aos africanos e a seus descendentes a possibilidade de refazer os laços, restabelecer elos afetivos e preservar antigas tradições, tornando-se um território de resistência fundamental.

Maria Helena Vilas Boas Concone define a umbanda como um processo de sincretismo que nunca termina. É um bom exemplo de interpenetração de culturas, não só com fusão de divindades, mas principalmente com a introdução de novas entidades em um processo contínuo de transformação.

Um dos aspectos que auxiliam a explicar o surgimento da umbanda como possibilidade religiosa forte e atuante no cenário brasileiro é a origem heterogênea do nosso povo. A miscigenação entre índios, negros e brancos é um fator que vai ser interpretado na construção de uma identidade nacional de forma ambígua.

A umbanda evoca essa miscigenação de forma positiva, como uma marca a ser valorizada. Nos anos 1920 é que se dá seu processo de consolidação, abraçando os ideais de valorização da brasilidade e dando ênfase, portanto, à contribuição das três raças que formaram nosso povo, num exemplo de “coesão”, de “harmonia”, de “democracia” racial e religiosa.

O candomblé nagô, no qual prevalecem os elementos da tradição ioruba, é de origem sudanesa. Antes, porém, haviam aportado no Brasil negros de origem bantu, cujos rituais estavam estabelecidos quando da chegada dos ioburas.

Concone, em seu livro “Umbanda: a religião brasileira por excelência”, contraria o senso comum entre os pesquisadores e ressalta que a “cabula”, culto africano que teria dado origem à umbanda, também seria bantu.

Entretanto, a organização da umbanda enquanto religião encontra no espiritismo kardecista sua base. Contam que o primeiro centro de umbanda teria surgido como dissidente de um centro espírita que não admitia a manifestação de espíritos de negros e caboclos, considerados inferiores.

O nome “umbanda” foi adotado oficialmente em 1941. A partir desse momento, a religião começou a se organizar nacionalmente e também passou a promover de maneira mais sistemática uma depuração de elementos africanos, buscando a uniformidade e a expansão do culto.

Segundo Roger Bastide, em seu livro “As religiões africanas no Brasil”, diferente do candomblé, a umbanda surge como um fenômeno urbano totalmente novo, simultaneamente ao processo de industrialização e urbanização vivido por grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.

Na umbanda, as divindades e ritos não apenas se justapõem, mas acabam se fundindo, inclusive em nível ideológico, constituindo uma doutrina que incorpora os diversos valores das religiões originais, sobretudo o catolicismo e o kardecismo.

As inúmeras entidades ou guias da umbanda, como os espíritos de caboclos e pretos-velhos, estão distribuídas em sete linhas, cada uma comandada por um orixá fortemente sincretizado com um santo católico.

Na definição de Reginaldo Prandi, a umbanda é “a religião dos caboclos, boiadeiros, pretos-velhos, ciganas, exus, pombagiras, marinheiros, crianças. Perdidos e abandonados na vida, marginais no além, mas todos eles com uma mesma tarefa religiosa e mágica que lhes foi dada pela religião fundada na máxima heterogeneidade social: trabalhar pela felicidade do homem sofredor.”

A umbanda é uma religião que surge a partir de processos sincréticos voluntários. Incorpora em seu ideário valores de culturas diversas, acompanha as transformações sociais e adequa seus rituais às mudanças do cotidiano.

Nessa religião, a herança africana passa por uma ressignificação, deixa de ser a matriz principal para tornar-se apenas uma das fontes. Na umbanda, os componentes negros, brancos e indígenas (ainda que simbólicos) adquirem um contorno mais racionalizado a partir da introdução do kardecismo.

Umbanda e candomblé encontram na população negra a sua origem, por isso sofrem os mesmos preconceitos. Vítimas de toda sorte de intolerância, lutam unidas pelo direito de praticar tranquilamente suas doutrinas, que diferem em termos rituais, mas encontram na fé nos orixás um ponto essencial de convergência e diálogo.

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