Diálogos da Fé

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As cortinas de fumaça da COP30

O modo de vida capitalista, especialmente em sua versão norte-americana e europeia, não apenas é ecologicamente impossível de universalizar, como se tornou insustentável

As cortinas de fumaça da COP30
As cortinas de fumaça da COP30
Foto: Odd Andersen/AFP
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“Senhoras e senhores, nós vivemos em um dos países mais bonitos do mundo. Perguntei a alguns jornalistas que estiveram comigo no Brasil na semana passada: ‘Quem de vocês gostaria de ficar aqui?’ Ninguém levantou a mão. Todos ficaram contentes por termos retornado à Alemanha, na noite de sexta para sábado, especialmente daquele lugar onde estávamos.”

Com essas palavras, Friedrich Merz, chanceler da Alemanha, fez um polêmico pronunciamento no qual, de maneira depreciativa, comparou o Brasil ao seu país. Sua expressão clara de alívio ao finalmente poder regressar à terra natal, após algumas atividades na COP30, e o mal-estar diplomático que suas palavras provocaram na comunidade internacional lançam luz sobre fatos incômodos que, apesar de debatidos no encontro, continuam a projetar sombras sobre o futuro planetário.

Para além da repercussão negativa que o discurso do chanceler teve no Brasil — ecoando em falas do prefeito de Belém, do governador do Pará e até mesmo do presidente Lula —, suas palavras expõem uma notável incapacidade de apreciar o que não se enquadra nos cânones europeus. Evidenciam também a inaptidão em demonstrar o devido respeito a culturas originárias complexas e milenares, que não apenas sobreviveram às violências do imperialismo impetrado pelos países do Norte Global, como diariamente se reafirmam como guardiãs da teia da vida que ainda resiste às destruições empreendidas pelo capital no Antropoceno.

Vale pontuar que o estado do Pará, situado no coração da floresta amazônica, está entre os lugares mais vulneráveis às mudanças climáticas — fato comprovado por diversos indicadores que vão desde eventos extremos, como secas severas, ao aumento das queimadas e às terríveis ondas de calor. Todos esses fenômenos, cada vez mais frequentes, impactam não apenas a saúde da população, mas aspectos essenciais da vida urbana, como abastecimento de água, produção agrícola e a própria floresta, que perde sua capacidade de sequestro de carbono, ponto central das discussões na COP30.

Não podemos ignorar que estudos projetam Belém como a segunda cidade mais quente do mundo até 2050. Provavelmente foi por isso que o distinto chanceler desejou tanto deixar “aquele lugar” e retornar à sua bela e fria Alemanha. Contudo, em breve ele e seus compatriotas também não terão onde se proteger da tragédia climática. Estudos do Painel Científico para a Amazônia (SPA, na sigla em inglês) informam que o desmatamento está intimamente ligado ao aumento da temperatura — afetando toda a população do planeta. Segundo um dos levantamentos citados pelo SPA em seu relatório mais recente, o desmatamento influencia em 74% na diminuição das chuvas; por isso, a estação seca no Pará já se alongou em mais quatro ou cinco semanas.

Para compreender a dimensão dessa catástrofe, basta lembrar que, no ano passado, o Pará registrou seca em 100% de seu território pela primeira vez. Isso significa, além de enorme perda econômica, aumento de doenças respiratórias causadas pelas queimadas, proliferação dos mosquitos transmissores de dengue e malária e inúmeros casos de diarreia associados à má qualidade da água. Para piorar, uma das funções vitais da floresta — retirar carbono da atmosfera por meio da fotossíntese — fica gravemente comprometida.

No entanto, as notícias dessa catástrofe anunciada parecem não chegar até a Alemanha, onde a distância geográfica sustenta a ilusão de que tudo permanece bem. Mas até quando? A Europa, assim como o resto do mundo, contribui imensamente para o aquecimento global, principalmente por meio das emissões de gases de efeito estufa resultantes da queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural). É fato incontestável que a União Europeia tem sido historicamente um grande emissor de poluentes e que, se todos os habitantes da Terra consumissem recursos e energia no mesmo nível da média europeia, seriam necessários vários planetas para sustentar tamanha demanda.

Mais preocupante ainda é saber que, diante desse horizonte desolador, a Alemanha não anunciou valores de ajuda para o fundo climático. Essa manobra política funciona como uma forma de evitar compromissos efetivos — tanto com o Fundo Florestas Para Sempre (TFFF), cuja meta é remunerar países que preservam florestas tropicais, quanto com a proposta do “Mapa do Caminho”, conjunto de planos de ação com etapas, prazos e metas concretas para acelerar a transição rumo ao fim do uso de combustíveis fósseis.

O modo de vida capitalista, especialmente em sua versão norte-americana e europeia, não apenas é ecologicamente impossível de universalizar, como se tornou insustentável num planeta de recursos finitos. A dolce vita desses países — onde o consumo massivo é normalizado, a descartabilidade produz mais resíduos do que se pode administrar (transferindo-se o problema para a periferia global, transformada em lixeira do mundo desenvolvido) e onde a produção raramente se pauta pela sustentabilidade — não pode seguir incólume, mantendo a lógica predatória de populações e bens naturais que vigora desde a Revolução Industrial.

É urgente considerar uma redistribuição mais justa dos recursos e uma reestruturação dos modos de produção para que a balança, historicamente desequilibrada, comece a mudar. De um lado, riqueza e opulência; do outro, subdesenvolvimento, pobreza endêmica e economia dependente. Esse panorama se tornou insustentável. Porém, dificilmente qualquer integrante das comitivas internacionais presentes em Belém renunciará ao seu estilo de vida — ainda que esse modo de existir esteja diretamente ligado à destruição que recai sobre o planeta e, de maneira especialmente dura, sobre os moradores de Belém, vítimas de um efeito dominó que já não permite ser ignorado.

Como bem reagiu Helder Barbalho, governador do Pará, ao infeliz pronunciamento de Merz, chanceler alemão que deu o pontapé nesta reflexão: “Curioso ver quem ajudou a aquecer o planeta estranhar o calor da Amazônia.” Por mais que não se pense ou fale sobre isso, alguns países têm mais responsabilidade do que outros. Não há tempo a perder em desavenças diplomáticas simplesmente porque, mesmo que a comitiva europeia deseje voltar para sua casa e seu bem-estar social, em breve nada disso existirá se medidas realistas não forem tomadas em conjunto. A temperatura global ferve.

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