Diálogos da Fé

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Apropriação cultural: como apagar cores e esvaziar conteúdos

A pesquisa para meu próximo livro, “O que é apropriação cultural”, tem revelado uma falta de compromisso com a História, com a cultura e com a verdade

A coleção da Terra Mystica
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Ao tratar a apropriação cultural como uma das mais usuais estratégias do racismo, percebo que numa sociedade de consumo, onde tudo é visto como produto, alguns precisam se tornar palatáveis.

Ao apagar elementos ou características que podem ser rejeitados, como a origem ou a cor de certos personagens, reiteram-se práticas de dominação que contribuem para a invisibilidade de grupos minoritários, como negros e indígenas.

Não faltam exemplos, mas um em especial me chamou a atenção. Há uma página na Internet denominada “Terra Mystica Livraria e Artigos de Fé”.

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Tem de tudo, parece uma loja de umbanda virtual, com produtos como banhos, velas, charutos, marafo, colares, incensos e a coleção infantil “Atividades de Orixás”, de Yonar Peixoto e Emmanuel Peixoto, na qual os orixás são retratados como brancos, com exceção de Oxum (que parece uma mulata do Sargentelli) e Oxóssi (que parece um menino branco fantasiado de índio).

Não encontrei informações sobre os autores e não tenho intenção de fazer uma crítica à coleção, mas é preciso dizer que muitas vezes se produz material didático ou recreativo sem nenhum trabalho de pesquisa, correndo o risco de difundir noções infundadas e reforçar estigmas e estereótipos.

Por mais que se possa argumentar que na umbanda houve um processo de sincretismo que associou orixás a santos católicos, nada justifica que se recriem divindades de origem africana apagando os traços da negritude.

Na umbanda houve um processo de fusão que em vez de alterar as imagens dos santos passou a trata-los com os nomes dos orixás. Sincretismo e apropriação são processos diferentes com propósitos bem específicos.

A apropriação cultural decorre da exploração de elementos de uma cultura por indivíduos ou grupos que efetivamente não pertencem a essa cultura.

Além do uso indevido de trajes e acessórios, como aquele polêmico caso dos turbantes, da expropriação de expressões artísticas e tradições, como no caso do samba e da capoeira, temos também a utilização de símbolos sagrados e religiosos, totalmente esvaziados de sentido e dissociados de sua origem, como se vê na citada coleção.

Trata-se de um desrespeito a um povo historicamente marginalizado que preservou a duras penas esses elementos indispensáveis de sua fé e identidade.

Uma coleção como essa, feita sem o menor cuidado e sem nenhum compromisso com a verdade, além de refutar elementos específicos de uma população, reforça as estruturas de dominação, ao lançar mão de uma posse indevida e alterar deliberadamente um componente fundamental, ou seja, a cor dos orixás, visando simplesmente a comercialização e o lucro.

Na lógica desse tipo de apropriação, que tem como base o consumismo e só se aplica às coisas do negro, busca-se mudar os significados, depurar e esvaziar completamente uma cultura.

Não se pode negar a origem dos elementos culturais ou religiosos. Reverenciar a história do povo que criou e preservou é indispensável. Divindades e símbolos sagrados não devem ser desrespeitados, não podem ser esvaziados de sentido e comercializados como super-heróis de histórias em quadrinhos ou enfeites.

A quem serve afirmar que orixá é amor, é energia e não tem cor? Qual o sentido e a intenção de retratar orixás como brancos? Quando nos lembramos que ser de candomblé significa assumir uma crença discriminada e perseguida, compreendemos que isso exige um posicionamento diante do racismo e da condição do negro em nossa sociedade.

Portanto, não podemos admitir que instrumentos que reforcem a discriminação e a invisibilidade do negro e de sua cultura sejam disseminados em nome dos interesses de uma sociedade consumista.

É necessário, mais uma vez, enfatizar que o candomblé é uma religião negra, por isso é uma religião rejeitada.

Quando se apropriam de alguns elementos específicos das tradições de matriz africana de forma irresponsável, acentuando de maneira subliminar visões negativas ou estereotipadas, presta-se um desserviço e reiteram-se as velhas práticas de dominação típicas de uma estrutura racista, especialmente por se tratar da imposição dos traços da cultura dominante a uma cultura historicamente menosprezada e combatida.

Qualquer elemento cultural removido de seu contexto original acaba assumindo outros significados, normalmente bem diverso e, em muitos casos, até contraditório.

Sempre que determinada minoria é submetida a uma dominação social, econômica ou política, isso implica também uma dominação cultural. Os processos de apropriação referem-se aos bens simbólicos de um grupo, que são descaracterizados e desvalorizados como forma de aniquilar suas tradições e negar sua humanidade e seu direito de existir.

Já ouvi de uma “pessoa de bem” que orixá é muito bom pra ser negro. Também já vi mãe de santo branca afirmar que seu candomblé é bom porque tem pouco negro.

E soube recentemente de crianças negras que sofrem discriminação em terreiros. Agora, pra quem raramente se vê representado e encontra na religião uma das poucas formas de reconstruir positivamente uma identidade é muito duro ver seus orixás retratados como brancos. 

Desconsiderar os significados reais dos elementos de uma cultura e submeter aqueles que sofrem uma opressão sistemática a mais processos de expropriação, principalmente crianças, é muito triste.

Até porque, ao se descontextualizar tais elementos, ressaltando aspectos interessantes para a comercialização, por exemplo, esquece-se de toda perseguição e de toda luta empreendida para preservar esse patrimônio.

Não se pode perder de vista que no Brasil as religiões de matriz africana são as grandes vítimas da intolerância. Portanto, não se pode tratar os orixás como personagens de histórias fantasiosas, pintados ao sabor da liberdade de expressão do artista e totalmente desprovidos de significado.

Se a falta de compromisso com a luta antirracista é questionável, imaginem a completa descaracterização dos orixás. A apropriação cultural tem fatores bastante preocupantes, como a comercialização desses componentes culturais, com lucros consideráveis, sem que absolutamente nenhum recurso seja revertido aos povos que criaram essa cultura ou a suas causas. 

Em vez de reforçar abismos sociais, seria interessante uma coleção que servisse para combater a intolerância religiosa e o racismo, além de contribuir para a construção de uma identidade positiva para meninos e meninas negras, que sofrem com toda a sorte de discriminação nas escolas, que nunca se veem representados e que assistem a uma verdadeira distorção dos elementos culturais de seu povo e uma completa desvalorização de suas tradições.

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