Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Aos espíritas que amam os filhos e respeitam as leis: vacinem as crianças

‘Vacinação é um pacto social. Ignorem o que fala o presidente para desencorajar a imunização infantil’

Foto: GEOFFROY VAN DER HASSELT/AFP
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(…) O Espiritismo, caminhando com o progresso, não
será jamais ultrapassado, porque se novas descobertas lhe demonstrarem que está
em erro sobre um ponto, modificar-se-á sobre esse ponto; se uma nova verdade se
revela, ele a aceita”. 

A Gênese, Allan Kardec

“Art. 14. O Sistema Único de Saúde promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos. § 1º É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.”

Estatuto da Criança e do Adolescente

Poderia começar o texto da semana argumentando que, se chegamos até aqui, erradicando centenas de doenças e combatendo outras dezenas, foi graças às vacinas que tomamos no decorrer das nossas vidas: varíola, febre amarela, DTP (difteria, tétano e coqueluche), poliomielite, tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola), meningite, BCG, influenza, rotavírus, pneumocócica e, mais recentemente, Covid. Parece até um trecho da música Pulso, do Arnaldo Antunes.

Quando eu era criança, dia de vacinação era uma festa. Minha mãe nos vestia com as melhores roupas e seguíamos, em mutirão, às vezes acompanhados por outras mães com seus filhos/as, rumo à escola  – na década de 1980, além dos postos de saúde, as campanhas de vacinação eram realizadas nas escolas. Depois de vacinados, ganhávamos um biscoito de polvilho. Quando fui levar minha mãe para se vacinar contra a Covid, fiz do mesmo jeito: comprei biscoito de polvilho para ela, resgatando essa memória afetiva.

Para a Organização Mundial da Saúde, a imunização em massa poderia evitar entre 2 e 3 milhões de mortes anualmente no mundo. Essa discussão foi intensificada durante a pandemia de Covid, que colapsou sistemas de saúde e matou quase 5 milhões de pessoas em todo o planeta, reforçando a necessidade de uma vacina para conter o avanço da doença.

No Brasil, atravessamos um período conturbado, não apenas como consequência da pandemia, mas, também, pela necropolítica de Bolsonaro e seus discípulos/as, uma espécie de seita macabra.

Infelizmente, o bolsonarismo encontrou um terreno fértil dentro das comunidades de fé, e boa parte das pessoas que julgávamos esclarecidas, amorosas e benevolentes tem flertado com a postura maquiavélica e odiosa do atual presidente, representando a antítese dos fundamentos religiosos.

Acovardada diante dos retrocessos sociais e das violações dos direitos humanos, boa parte da comunidade espírita – que já ousou debater temas como células tronco, fertilização in vitro, divórcio e adoção – fez uma aliança com os setores mais retrógrados e conservadores do cristianismo. Alguns figurões espíritas, inclusive, são entusiastas dos discursos antivacina do atual presidente da República.

Vivemos tempos difíceis para os/as sonhadores/as, em que é necessário defender o óbvio, disputar narrativas e resgatar conceitos e valores presentes nas religiões – no meu caso, no espiritismo, doutrina em que, apesar dos horrores que fundamentalistas estão fazendo com ela, ainda sigo -, atualmente adormecidos ou propositalmente apagados por aqueles/as que querem fazer das comunidades de fé locais dogmáticos, vazios de interpretações e que, afastando-se de seus princípios, excluem, segregam, oprimem e matam.

Há alguns dias fui marcado em uma postagem de um jornalista indignado – e com razão – com um perfil espírita que havia feito uma enquete sobre vacinação infantil. Para a surpresa do jornalista – e para a minha também – parte expressiva dos/as seguidores/as daquela página repudiavam uma orientação dada por um mentor espiritual, consultado pelos administradores/as da página.

“O que os espíritos de luz sábios dizem sobre vacinar as crianças? R: Devem se vacinar, todos, sem distinção, quem não quiser se enquadrar na condição de suicida ou de homicida, VACINE-SE”.

Mentor espiritual, para quem não tem familiaridade com a linguagem espírita, é uma espécie de guia de luz, um espírito que já passou pela Terra e, por ter acumulado aprendizagens e praticado o amor e a bondade, tornou-se uma espécie de anjo guardião, como é conhecido em outras religiões.

Eu não vou entrar no mérito da espetacularização da fé ou na “informatização” da psicografia (comunicação com o mundo espiritual por meio da escrita), mas, sim, é bem estranho “espíritos” fazendo lives, por exemplo.

Do ponto de vista doutrinário espírita, a informação dos administradores da página está correta, como podemos perceber em O Livro dos Espíritos – Capítulo XI – Da lei de Justiça, de Amor e de Caridade – questão 880 – Qual o primeiro de todos os direitos naturais do ser humano?

“O de viver. Por isso é que ninguém tem o direito de atentar contra a vida de seu semelhante, nem de fazer o que quer que possa comprometer-lhe a existência corporal.”

Dito isso, meus amigos e amigas, gostaria de destacar outro ponto: nenhum livro, por mais sagrado que seja para quem nele acredita, deve estar acima das leis brasileiras e internacionais. Não se constrói políticas públicas a partir de livros sagrados ou preceitos religiosos.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído pela Lei Federal 8.069, de 13 de julho de 1990, é a norma jurídica e legal fundamental que regula a proteção das crianças e adolescentes em nosso País e que está estampada no art. 227 da Constituição Federal Brasileira de 1988, que estipula que: é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança , ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 

Por sua vez, regulamentando mais pormenorizadamente a questão, o artigo 22 do ECA é claro ao se referir sobre os deveres dos familiares/responsáveis: Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.

Daí, à primeira vista, importante se considerar que, a despeito das obrigações do Estado, autoridades e sociedade como um todo, cabe aos familiares/responsáveis a responsabilidade mais direta quanto aos filhos.

O ECA introduz na sociedade brasileira a Doutrina da Proteção Integral, um novo paradigma, colocando o princípio de corresponsabilização, na medida em que passa a ser atribuição do Estado, da Família e da Sociedade assegurar os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, que passam a ser vistos como sujeitos de direitos humanos fundamentais.

Ele foi escrito e pensado por milhares de pessoas, a partir de uma ampla mobilização social, e também uma das primeiras leis no mundo a traduzir os princípios da Convenção Internacional dos Direitos da Criança da ONU de 1989, que consagra a Doutrina da Proteção Integral – adotada um ano antes, tornando-se referência para outros países.

A Fiocruz, uma das responsáveis pela produção da vacina, divulgou uma nota técnica em que defende a importância de vacinar crianças de 5 a 11 anos contra a Covid. A Fundação avaliou que a Anvisa realizou uma análise técnica rigorosa para autorizar a aplicação dos imunizantes em crianças dessa faixa etária e que a vacinação infantil já foi iniciada em outros países, sendo ferramenta fundamental no controle da pandemia.

Portanto, ignorem o que fala o atual presidente para desencorajar a vacinação infantil.

Vacinem seus filhos/as, postem fotos, pesquisem, dialoguem com familiares de outras crianças sobre a importância da imunização.

Vacinação é um pacto social segundo o qual nos protegemos e protegemos nossos filhos/as (que amamos), ao mesmo tempo em que protegemos outros filhos/as de outras pessoas, reforçando a máxima de Jesus: “Em verdade vos digo que, quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos a mim o fizestes.” – Mateus, 25:40.

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