Diálogos da Fé
Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões
Diálogos da Fé
Álcool e masculinidade violenta: reais inimigos da família brasileira
Aliar cerveja a um ambiente de provocação e violência como o do Spaten Fight Night não deveria ser permitido


No último mês, a Spaten, uma marca de cerveja que vem disputando uma fatia do mercado cervejeiro brasileiro, organizou um evento nomeado de Spaten Fight Night, que está em sua segunda edição. Desta vez, a luta principal do evento contou com o boxeador Popó Freitas e o lutador de MMA Wanderlei Silva. A rivalidade foi o centro da promoção do evento, com destaque para as provocações entre os dois lutadores, ações típicas do mundo do MMA. Fugindo do estereótipo de mulher de biquíni, a marca apostou em outro clichê masculino: a virilidade. Inicialmente, pensei: violência e álcool, quanta irresponsabilidade associar uma marca de cerveja ao esporte cujo principal objetivo é bater no outro.
Após a fatídica luta, o comportamento das equipes não poderia ser mais masculino. Com pancadaria para todo lado, as provocações que seriam apenas uma “saudável rivalidade” se transformaram em um show de horror. O que seria uma exaltação ao esporte, mas que nas peças publicitárias veiculadas já vinha com pitadas da masculinidade tóxica, virou um exemplar do que acontece em muitas casas brasileiras.
Sim, o álcool é fator determinante em muitos casos de violência doméstica nas casas brasileiras. Evidentemente, não devemos culpar a bebida por comportamentos violentos de homens, contudo, chamo a atenção para o fato de não podermos naturalizar que marcas de bebidas alcóolicas possam patrocinar eventos que promovam algum tipo de exaltação da violência, justamente porque o álcool é presente em inúmeras denúncias de violência doméstica, sobretudo quando os autores de violência fazem uso abusivo das bebidas.
Em 2022, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios abordou o tema no podcast Maria da Penha & Você. O assistente social e coordenador do Polo Oeste do Núcleo Judiciário da Mulher, Marcos Francisco de Souza, observou que na relação entre bebida e violência doméstica, “a questão a ser avaliada é quando o uso começa a se tornar prejudicial para quem consome e para aqueles que convivem com o usuário”. Sobre a violência doméstica, Souza afirma que “já foi confirmado, por meio de pesquisas e estudos do gênero, que há aumento no número de casos, dos tipos e da gravidade das ações quando o álcool está presente. Contudo, é preciso desconstruir e repensar a crença de que o álcool é um grande causador da violência doméstica. A bebida não transforma o parceiro ou familiar da vítima em alguém violento, ela somente libera a violência que já existe nele”.
Meu objetivo com este texto não é criminalizar o álcool e muito menos os esportes que envolvam lutas, mas chamar atenção para a irresponsabilidade deste evento. Naturalizar a relação entre álcool e esportes que usam a força, como socos e chutes, é dar uma mensagem tácita para a audiência de que a masculinidade apreciada socialmente naturaliza a violência e o álcool como parte de uma certa masculinidade aceitável.
Muitos podem pensar que há um exagero da minha parte, que a marca de cerveja apenas quis apoiar o esporte, como ela mesma disse ao se pronunciar sobre o episódio lamentável de pancadaria. Mas por que o MMA? Por que explorar a rivalidade? Em época de grupos como Legendários e Machonaria, com que público esse tipo de evento dialoga? Grupos masculinistas, conhecidos como Red Pill, exaltam uma suposta importância da masculinidade patriarcal, uma masculinidade que acredita que o mundo pertence aos machos.
Mesmo nas igrejas evangélicas, muitas mulheres se deparam com a violência doméstica, acentuada pelo uso abusivo de bebidas alcóolicas. Raro é o pastor que orienta as mulheres a deixarem casamentos em que a violência impera. Muitos líderes religiosos colocam os maridos abusadores em oração para que “deixem a bebida e a violência”.
Recentemente, reportagem intitulada Evangélicas brasileiras vítimas de violência doméstica relatam omissão de pastores, de Manuela Rached Pereira, publicada pelo UOL, demonstrou como mulheres acabam sendo julgadas por uma vida espiritual de pouca oração, quando são agredidas. Como se fossem mulheres que não edificam seus lares e não honram o marido — e por isso acabam sendo agredidas. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicou no relatório Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil dados de violência contra as mulheres no Brasil e constatou que as evangélicas são 42,7% das mulheres que sofrem violências no País. O Censo de 2022 atestou que os evangélicos são 26,7% da população brasileira.
Em outras palavras, as mulheres evangélicas são as que mais são violentadas dentro de casa em território brasileiro.
São mulheres orientadas a continuar em casamento abusivos, perdoando e aceitando o comportamento violento de seus maridos. São mulheres que vão aos bares de suas cidades buscar maridos violentos, apanhando muitas vezes na porta do próprio bar.
Ou seja, em um país em que quatro mulheres são assassinadas por dia apenas por serem mulheres, as cervejarias e outras empresas que fabricam bebidas alcoólicas deveriam apoiar o combate à violência contra as mulheres. E não oferecer cerveja para um público masculino que torce para dois homens que se batem. A estética de um ringue de MMA é uma estética que exalta a virilidade, que dentro das casas se torna violência contra mulheres e crianças. Spaten, por que não se propõe a apoiar projetos de conscientização contra a violência contra mulheres?
Álcool e violência são vilões das famílias brasileiras, assim como os discursos machistas que exaltam o arquétipo do macho-alfa. Não são as feministas, o movimento LGBTQIAPN+, a educação sexual e de gênero nas escolas, a “ideologia de gênero” — que sequer existe — os vilões das famílias brasileiras. São leis que não controlam o discurso de ódio nas redes sociais, a ausência de uma fiscalização midiática que impeça a veiculação de campanhas como o Spaten Fight Night. Reafirmo: aliar cerveja a um ambiente de provocação e violência não deveria ser permitido! Os efeitos desta irresponsabilidade serão sentidos nas casas das mulheres brasileiras, infelizmente.
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