Diálogos da Fé

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A renovação do movimento espírita virá pela juventude…Ou não virá

Caso contrário, só restarão os heterossexuais brancos e velhos

Unidos contra o atraso
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“Qual seria o caráter do ser humano que praticasse a justiça em toda a sua pureza? — O do verdadeiro justo, a exemplo de Jesus; porque praticaria também o amor ao próximo e a caridade, sem os quais não há a verdadeira justiça.”  (Livro dos Espíritos, Allan Kardec) 

Por que, diante de tantas violações – direitos humanos, trabalhistas, sociais, previdenciárias – as federativas não descem do muro e se posicionam radicalmente contra, assim como fizeram CNBB, CONIC, Fórum Ecumênico ACT Brasil e a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito?

Como enfrentar a onda conservadora e reacionária no movimento espírita e que tem expulsado aqueles que não pensam igual ou que se opõem aos dirigentes, que agem como verdadeiros donos das casas espíritas?

Como nós, espíritas progressistas, podemos interferir para que o Movimento Espírita Brasileiro (MEB), assim como acontece com outras comunidades de fé, não se torne uma junta formada apenas por brancos, idosos e heterossexuais?

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Atravessamos um período difícil para os sonhadores, marcado por forte crise política, social, econômica e espiritual, com a ascensão de um governo autoritário, conservador, violento e antidemocrático.

Temos assistido, espantados, o crescimento de representantes espíritas que se alinham com esse discurso. Esse mesmo candidato, que simboliza a antítese do pensamento cristão, justamente pelas ideias que defende, foi o mais votado entre os espíritas, segundo pesquisa eleitoral realizada pelo Datafolha.

Cresci no movimento espírita – que nada tem a ver com o espiritismo, pois o primeiro é a interpretação que cada um faz das obras de Kardec – e hoje meu vinculo com esse movimento é bem frágil, quase inexistente, exatamente pela postura que tem adotado.

Logo após o resultado do primeiro turno e prevendo a possível vitória de um candidato (o que, infelizmente, se consumou) que defende publicamente o fuzilamento de seus opositores e o banimento do que ele chama de “vermelhos” alguns amigos que fizeram parte dos grupos de juventudes comigo e que acreditam num espiritismo libertário, amoroso, dialógico e radicalmente contrário a violência e ao ódio, manifestaram preocupação.

Alguns desses amigos não frequentam mais centros espíritas justamente por conta do que mencionei no inicio deste artigo. Paralelamente a isto, um outro grupo de jovens, estes ainda atuantes nas mocidades espíritas, também se opuseram ao candidato do ódio.

Nossas trocas, entre os dois grupos, têm se dado de maneira virtual e um encontro presencial está previsto para o próximo sábado. Além disso, muitos desses jovens assinaram o “Manifesto de espíritas progressistas por justiça, paz e democracia”.

Pouco antes de seu desencarne, tive a alegria de ter uma conversa com uma senhora, espírita e militante de esquerda.

Tomo a liberdade de reproduzir parte do diálogo, a seguir:

“Meu filho, embora hoje eu já esteja velha e andando com dificuldades, minha memória está melhor que nunca (risos). Lembro muito bem daquele dia. Quando o jornal anunciou a derrubada do João Goulart na televisão, eu estava saindo do banho, enrolada na toalha, corremos para frente da televisão, abracei minha mãe e choramos, porque sabíamos que seria um período de trevas, os espíritos, mentores da casa, já tinham nos avisado. […] Essas coisas a gente não esquece! Eu e minha mãe escondíamos nossos amigos que mexiam com política, com movimento estudantil, com o ‘partidão’ (comunista), dentro da câmara de passe…”

Ela continuou: “Ou a gente fazia isso ou eles iam morrer de tanto apanhar da polícia. Nós éramos de família boa, família conhecida e por mais que a polícia desconfiasse, não vinham mexer com a gente. Acho que tinham era medo dos espíritos (risos). Naquela época, ainda tinha muito preconceito com quem era espírita. Quando a repressão começou a ficar mais forte, nós ficamos com muito medo de sermos descobertas. Um dia, estava bem frio e chovia muito, um amigo que tinha estudado comigo chegou correndo no centro espírita. Ele estava vestido apenas com um short, porque, quando a polícia chegou na casa dele, ele pulou o muro e não teve tempo de se vestir. Enquanto eu procurava uma roupa para aquecê-lo, minha mãe preparava um sopão, com tudo o que tinha direito (choro). Ele estava bem magro, sabe? Mas quando ele correu, fugindo, alguém viu ele entrar no centro e deve ter falado para a polícia. Não demorou trinta minutos, a polícia bateu na porta. Rapidamente, nós o escondemos debaixo da mesa do salão. Abrimos o evangelho e começamos a rezar, como se só estivesse nós duas encarnadas no salão (risos). Meus dentes batiam uns nos outros e eu não sabia se de frio ou de medo. A polícia entrou e continuamos sentadas, orando, pedindo a Deus e a Jesus não nos desamparasse (choro). Os policiais perguntaram se tínhamos visto um homem e deu as características do meu amigo. Nós negamos. Minha mãe, muito tranquilamente, perguntou ao policial se ele era médium (risos) e que ele poderia ter visto um espírito (mais risos), que era comum, quando não se “protegia”, ver desafetos já desencarnados (risos). Os policiais foram embora, terminamos a oração, agradecendo a Deus e Jesus por ter nos livrado de mais uma provação, depois comemos toda a sopa.”

Relatos como esse nos apresentam uma contraposição em relação ao papel de alguns espíritas no golpe de 1964. Embora determinados representantes do espiritismo tenham apoiado – ou, no mínimo, se calado – diante das violações cometidas pelos militares durante todo o regime militar, outras, como essa senhora, tiveram um papel fundamental na defesa e proteção de ativistas políticos.

No livro “1964: O golpe que derrubou um presidente”, dos historiadores Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes, fica evidente que a “Marcha da Família Unida com Deus pela Liberdade”, ou a “Marcha da Família”, foi um protesto promovido por setores das classes média e alta pedindo a derrubada do governo João Goulart.

Neste “protesto” não marcharam apenas católicos e evangélicos, também espíritas participaram ativamente da marcha golpista. O protesto começou no centro de São Paulo, em 19 de março de 1964, seis dias após o comício de João Goulart na Central do Brasil, Rio de Janeiro, em que Jango reafirmou sua vocação nacionalista, mas a direcionou em favor de forças radicais como as da CGT (Central Geral de Trabalhadores, a “CUT” da época), das Ligas Camponesas (equivalente ao MST).

Diante do atual cenário, muito parecido com o de 1964, ou renovamos o movimento espírita, criando espaços de diálogo, saindo dos centros e indo para as ruas, onde há problemas reais, ou corremos o risco de nos tornamos mais uma seita religiosa, contaminada de ideias preconcebidas e retrógradas.

Defendo que essa renovação venha por meio da juventude, que não deve frequentar centro espírita apenas para fazer decoração para eventos ou para fazer teatro nos fins de semana.

Ou a renovação do movimento espírita virá pela juventude ou não virá.

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