Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

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A Religião de Política

‘Hoje em dia, se sua posição não está em conformidade com a minha, ela não serve e é um caminho errado’, aponta Atilla Kuş

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Faz exatamente um ano que a quarentena devido à pandemia de Covid-19 começou. Faz mais de um ano – mais precisamente desde 11 de março – que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou esta doença como uma pandemia, pois já afetava quase toda a população mundial.

Porém, apesar de ter se passado um ano, no Brasil, a tragédia é maior do que o momento que foi chamado de pico da pandemia. Nós nos espantávamos com os primeiros casos de Covid no País ainda quando se contavam com os dedos. Mas hoje, apesar de mais de duas mil mortes por dia, muitos tendem a criticar aqueles que tomam medidas restritivas para conter o aumento dos casos de coronavírus e a perda crescente de vidas.

As críticas, na maioria das vezes, são cheias de ofensas àqueles que tomam as medidas restritivas e se baseiam somente – mas somente – nos discursos e nas diferenças políticas. Ou seja, não é importante o que e por que esteja sendo feito, o importante é quem está fazendo e qual é a sua adesão política diante daqueles que eu apoio.

Uma das características da modernidade é a ideia da relegação da religião ao foro íntimo de cada indivíduo. Principalmente, com os fluxos migratórios internacionais, a crescente pluralidade religiosa nas sociedades mundiais ajudou – e ajuda – na formação de novos tipos de religiosidades que não necessariamente correspondem ao modelo que vemos nas igrejas, mesquitas, sinagogas, templos e terreiros. São religiosidades que não têm uma uniformidade. O sociólogo americano Thomas Luckmann, em seu livro A Religião Invisível, aborda o assunto profundamente. Segundo essa ideia de religiosidade invisível e novos movimentos religiosos, vários estudiosos desenvolveram a ideia de que, hoje, muitas instituições, que não têm caráter de religião, também possam sê-la: como um time de futebol entre outras coisas que conseguem unir as pessoas em torno da mesma ideia, possuem certas práticas ritualísticas etc.

Partindo dessa ideia e analisando os acontecimentos que citei no início deste bate-papo, comecei a pensar se hoje as posições políticas não se tornaram religiões. Pode até parecer brincadeira, aceito. Mas olhemos ao passado e depois ao presente. Na antiguidade medieval, muitos dos acontecimentos eram movidos pela religião – ou por coisas disfarçadas de religião. Hoje, ao invés dela, a política é o que move as massas. Acredito que se Marx hoje estivesse vivo, diria que “a política é o ópio do povo”. Pois se antigamente a religião servia para legitimar erros e danos, hoje a política cumpre o mesmo papel. É em nome da diferença da posição política que discordamos ou concordamos. É em nome destas mesmas diferenças é que, hoje em dia, optamos por conviver ou não com outras pessoas. Aquilo que antigamente era religião, hoje não é mais relevante embora não tenha perdido totalmente o seu espaço na sociedade.

Daí vem a angústia que moveu este bate-papo: hoje em dia, nós, seres humanos, estamos tomando as nossas diferenças políticas como critério de concordância e convivência com o outro. O outro é definido pela sua posição política e se esta posição não está em conformidade com a minha, ela não serve e é um caminho errado. Sendo assim, questões essenciais como a vida humana acabam sendo elementos na disputa da religião de política.

Se o político, de quem eu sou sequaz, não é a favor das restrições contra o coronavírus, não adianta quem seja o outro que favorece a prevenção e as restrições. Por mais que este seja, em termos humanísticos, o caminho certo, por não ser o caminho do meu líder político, é um caminho errado e abominável. Portanto, fora do meu partido político não há salvação e somente ele é correto. Esta é a realidade infeliz dos dias de hoje e por causa disso nós perdemos mais de duas mil vidas por dia. Mais de duas mil vidas são sacrificadas em favor da deusa política. Eis o ritual da Religião de Política.

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