Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

A mentira, o hábito de mentir e a falta de direitos

Qual a verdade em meio a distorções, imprecisões e invenções?

Mentimos para nós mesmos
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Atravessamos um tempo de disputa entre mentiras políticas, sociais e econômicas apoiadas pelas mentiras da mídia, pelas ‘Fake News’ grupais e individuais. Cada um se acha no direito de opinar sobre tudo, além de se apropriar de um discurso e até atribuí-lo a outro.

E todas estas informações mentirosas e desencontradas são chamadas de democracia. Nada parece confiável. Nada tem certeza e verdade. Quem orquestra esse arsenal de produções de mentiras e em favor de quem?

Um novo tipo de impotência toma conta de nós nesse imenso fluxo de mensagens, informações, ideias que chegam e saem de nós. Queremos saber ‘a verdade’. Mas qual verdade em meio a uma babel de mentiras, de imprecisões, de invenções?

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Cabe então uma pergunta: o que é a mentira? Etimologicamente, a palavra mentira vem do latim mentire que remete à palavra mens, que significa ‘mente’, inteligência, intenção. Indica um ato de alguém que tem ‘mente’, inteligência e intenção e modifica as informações para obter algum proveito ou se livrar de alguma situação incômoda. Por isso, só os seres humanos são capazes de mentir.

Há uma variedade imensa de mentiras e de mentirosos assim como de razões para mentir. Não é meu objetivo fazer uma análise de casos e nem refletir sobre os métodos de detectar mentiras.

O fato é que as muitas mentiras mascaram situações, emoções, hábitos, ações que não queremos tornar públicas por muitas razões. E as razões não escondem apenas atos de corrupção, roubo de dinheiro público, latrocínio e outras mazelas de nossa espécie.

Elas escondem igualmente a falta de direitos, o medo de totalitarismos, o medo da punição injusta, o medo de uma violência maior e das mil ameaças que são feitas pelos sistemas de poder.

‘Você abortou?’ Não, perdi a criança porque uma vaca estava atrás de mim e caí na ribanceira. ‘Você é alcoólatra?’ Não, só bebo de vez em quando, pode perguntar para meu irmão. É que estou desempregado. ‘Você estava escondendo esse homem da polícia?’ Não senhor, nem vi quando ele entrou em minha casa. ‘Você estava roubando uma lata de leite?’ Não, só estava olhando o preço para ver se dava para comprar para minha filha.

Se vamos a outro extremo, podemos ver outras mentiras de um teor diferente. ‘O senhor desviou as verbas liberadas para a construção do hospital público’? Não, apenas precisei usá-las para um plano emergencial. ‘De onde recebeu essa mala de dólares?’ Nunca a vi, algum adversário deve ter entrado no meu apartamento.

Cada mentira ou ato que chamamos genericamente de mentira, porque provem de nossa mente, esconde e revela algo da realidade e reflete uma situação diferente numa imensa escala de razões justificando as mentiras.

Nessa linha diversificada, podemos dizer que a negação da realidade ou a capacidade de mentir é também nossa capacidade de modificar os fatos para nos protegermos e defendermos a precariedade de nossas vidas.

Mudamos a realidade ou sua interpretação por medo das sanções que podem decorrer de nossos atos deliberados contra as leis de um país ou de qualquer instituição ou de costumes estabelecidos. Mudamos a realidade para nos defendermos de outra realidade que nos ameaça por suas possíveis atrocidades.

É justamente aqui que precisamos distinguir as diferentes situações, a grandeza ou a pequenez de nossas mentiras e suas consequencias na vida pessoal, social e política. O dever de dizer a verdade acompanha os direitos devidos aos indivíduos. Dessa forma não se pode afirmar a verdade quando a vida pessoal e de outros está ameaçada. A mentira como defesa da vida se impõe.

Por isso, uma coisa é a mentira dos políticos, dos ditadores, dos generais, dos empresários, dos donos do poder público nas suas diferentes esferas e formas. Outra coisa é a mentira por falta de direitos que nos são devidos pelo Estado ou pelas instituições sociais e econômicas. E outra coisa ainda são as situações mentirosas de nossa imaginação, buscando os pequenos proveitos, escondendo medos, angústias, inseguranças emocionais ou desejos de posse abundantes em nosso cotidiano.

Assim, dizer que ‘todos somos mentirosos’ é como dizer que ‘todos temos fome’ ou que ‘todos somos mortais’.  A generalização dos conceitos não nos ajuda a agir em relação à desproporção e injustiça que acontecem nas muitas relações sociais e políticas.

As justificações universalistas não nos levam a nada a não ser ao aumento dos conflitos e da falsidade entre nós porque justificamos e naturalizamos a instauração da mentira e da violência em nossas relações.

A mentira dos homens públicos não pode ser justificada apenas por nossa finitude humana ou pela condição pecadora da humanidade. A mentira como roubo dos bens públicos, como apropriação indevida da terra, dos mananciais de água, da falta de direitos reais da população deve ser sujeita a uma análise rigorosa pelos detentores dos bens públicos, ou seja, por nós as cidadãs e os cidadãos.

O princípio desse tipo de mentira feita pelos poderosos está numa visão da vida que lhes libera o ato de mentir porque se julgam donos do mundo, donos de privilégios e de melhor qualidade em humanidade.

Essa propriedade indevida é uma transgressão de direitos na medida em que a divisão entre os que têm posses e os que não têm é naturalizada, ou seja, confirmada a partir de uma diferença social hierárquica considerada natural.

Justamente a cultura nas suas diferentes expressões nos civiliza e nos impõe relações a partir de direitos e não de naturezas. Essa ‘ideologia’ essencialista descreve o mundo como sendo assim e tendo que ser assim. Uns têm e outros não. Uns podem e outros não. Uns valem e outros não.

Nessa lógica, cujo fundamento é questionável pelos defensores das teorias sobre os direitos humanos, há uma crença de que é o mais forte que sobrevive e esta é a lei inscrita em nossa natureza.

Por isso, eles, os poderosos e seus dependentes, se consideram os melhores, e os outros são os culpados do mundo não ser o que querem que seja. Dessa postura surgem todas as invenções e mentiras sobre o ‘povo eleito’, a melhor raça, o sangue azul, a importância maior dos empresários, dos banqueiros e economistas do capitalismo, todos eles príncipes desse sistema de iniqüidades e benesses hierarquizadas.

Todas essas invenções de mentes megalomaníacas não encontram um fundamento racional igualitário, mas se baseiam no ódio aos diferentes, ódio àqueles que me atrapalham, àqueles que não são minha imagem e semelhança.

Fundamento racional é aquele que existe na condição humana, aquele que nos torna iguais em direitos e deveres do ponto de vista da manutenção da vida. Todas e todos temos direito à comida, a bebida, a moradia, a vestimenta, ao cuidado com nossa saúde, a sermos educados e assim por diante.

O ‘todos’ tem que ser todos/as e não uma pequena porcentagem do todo que se julga superior e, portanto, mais sujeitos de direitos do que os outros. Essas afirmações sobre o privilégio natural de alguns são por si mesmas mentirosas pois escondem o fundamento sem fundamento de sua grandeza. Portanto, a mentira desse fundamento.

Acreditam que por sua ‘perfeição’ social quase inata podem ter uma ilimitada liberdade para dominar as pequenas liberdades, as pequenas propriedades, os pequenos povos, as pequenas aldeias, os pequenos quilombos, as mulheres, as águas e florestas.

Sua grandeza transforma sua mentira em verdade para eles, em crença de que são escolhidos talvez por seu deus para fazer obra de humanidade desenvolvendo a terra para eles e submetendo-a a sua razão.

O outro lado, o lado dos ‘descamisados’, dos que têm que lutar pelos direitos mais elementares, esses também mentem. Mentem a si quando acreditam nas mentiras dos grandes. E mais, não são isentos do poder da sedução do dinheiro e do que a sociedade de consumo pode oferecer, não são isentos das mentiras emocionais, dos ciúmes e da violência.

Um pobre pode mentir para outro pobre e enganá-lo, um agricultor pode vender uma semente ruim a seu companheiro dizendo que é boa e assim por diante. Entretanto, entre os pobres, os despossuídos de direitos, há os que lutam por sua dignidade. E, nessa luta, a mentira que muitas vezes afirmam é em benefício de direitos, de suas vidas e não do roubo de outros.

Não sei se chamaria isso de mentira ou de artifício de sobrevivência. Nessa linha, abre-se outro tipo de problema que os filósofos e antropólogos chamam de necessidade de reconhecimento. Cada um de nós necessita do reconhecimento dos outros, ou seja, necessita que os outros reconheçam a dignidade de sua vida, seu valor como ser humano sujeito e não objeto de uso e de comércio alheio.

O fato é que estamos com uma pobreza de reconhecimento de nossos direitos e, portanto, do valor individual. Num país onde 70% da população não têm reconhecimento real, não tem acesso eficaz às leis e a direitos, pode-se dizer sem hesitação que as leis são formalidades mentirosas quando afirmam sua universalidade.

Do ter ao poder e do poder ao valer, da lei ao direito, apenas uma elite se apossa dos bens que democraticamente são afirmados de todos, mas realmente são de poucos.

De fato, as coisas mudam mais depressa que os indivíduos. Novas tecnologias se instalam, mas não conseguimos ajustar a elas nossas emoções e nossos valores em vista da respeitosa convivência comum.

Nos momentos de maior crise como o que atravessamos somos desafiadas/os a pensar de novo sobre as coisas que fazem parte de nossa vida. A mentira é uma delas e a partir dela se impõe outra reflexão, uma reflexão sobre a verdade. Não seria ela em grande parte o avesso da mentira?

 

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