Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

A igreja que proíbe mulheres de tocarem em seus cultos 

O sentimento de inúmeras mulheres que frequentam a Congregação Cristã no Brasil é o de que a soberania masculina na Igreja limita a própria espiritualidade delas

(Foto: Wikimedia Commons)
Apoie Siga-nos no

A Páscoa Cristã versa sobre a passagem de um mundo de opressão, para um mundo de liberdade. O plano de Salvação é explícito nas ações do próprio Cristo, Ele faz seu ministério entre as pessoas mais vulnerabilizadas e, por isso, foi crucificado. E não há como negar que as mulheres estão em grande evidência.

Como disse Sojourner Truth, “seu Cristo nasceu de uma mulher” e, acrescento, foi às mulheres que Ele se anunciou após a ressurreição. Foram mulheres que, enquanto os homens estavam escondidos, se levantaram para cuidar do corpo de Jesus. Mulheres permeiam todo o ministério de Jesus: Maria Madalena, Maria de Betânia, a Mulher do Fluxo de Sangue, Maria, Isabel. Mesmo em uma leitura literalista da Bíblia, não há como não considerar o protagonismo das mulheres nos Evangelhos.

Infelizmente, nem todas as denominações evangélicas entendem a importância da participação feminina em suas comunidades. Pregam constantemente uma submissão que oprime, silencia e sustenta relações violentas entre homens e mulheres. Há alguns meses, Mirian* me procurou, pois estava aflita com uma situação que tem vivido em sua comunidade de fé. Ela é membro da Congregação Cristã do Brasil (CBB), igreja que é conhecida por seus templos suntuosos e por suas orquestras muito bem ensaiadas. 

Mirian, como a irmã de Moisés que liderava a música do povo judeu, me disse que na CCB mulheres não podem ser anciãs (nome da função de liderança nesta igreja), não podem ser cooperadoras ou, ainda, tocar na orquestra. Violinos, trompas, trompetes e demais instrumentos sinfônicos são proibidos para as mulheres. Às mulheres, são destinados os cargos de organistas, apenas. Isso causa muita angústia para as musicistas das Igrejas da CCB.

Perguntei a Mirian se a CCB sempre excluiu as mulheres das orquestras, e surpreendentemente, ela me disse que não. Mirian me disse que em uma Assembleia da denominação, em 1961, os anciãos da Igreja chegaram à conclusão de que o Senhor teria “esclarecido aos irmãos anciãos de excluírem as mulheres  dos conjuntos musicais, a não ser no órgão, ficando assim impedida toda e qualquer oportunidade para o inimigo causar dano à Obra de Deus”.

Ora, apenas a partir de 1961 que as mulheres passaram a causar dano à obra de Deus? Essa típica demonização das mulheres, seus corpos e demais ações femininas, não é uma orientação de Deus. É a representação do patriarcado na vida cotidiana de muitas religiões cristãs. Temos que lembrar que em 1960, o movimento feminista estava a todo vapor no mundo. Mulheres passam a questionar seu papel na sociedade, nas famílias e nas religiões. Nitidamente, a restrição das mulheres na orquestra é uma tentativa de tornar a mulher “mais feminina”, evitando que ela tocasse instrumentos que pudessem masculinizá-las. E uma resposta à onda feminina de emancipação, colocando mais correntes nos punhos das religiosas. 

Mirian me confessou a tristeza que sente com essa postura da Igreja: “Nós, mulheres, somos impedidas de servir a Deus com nossos dons e talentos. Ora, se meu dom é tocar violino, porque não poderia fazê-lo para Deus?” Mirian me diz, ainda, que a violência doméstica é recorrente na denominação. Quando uma mulher relata um casamento abusivo, a postura dos cooperadores sempre é: ‘vamos orar”.  Assim como as inúmeras demandas das mulheres para que possam tocar nas Orquestras da CCB foram ouvidas, mas nunca atendidas. Mirian me disse que a Assembleia da Igreja prometeu levar em oração esse tema, para ver qual a vontade de Deus, mas essa oração nunca aconteceu. Mirian questiona: “A dúvida que fica é: será que os irmãos têm medo de orar e a resposta de Deus não ser o que eles querem?”

O sentimento de inúmeras mulheres que frequentam a CCB é o de que a soberania masculina na Igreja limita a própria espiritualidade delas. Geralmente, quando são questionados os líderes dizem: “se não está satisfeita com a doutrina, saia da Igreja”. Mirian, contudo, se mantém firme na Igreja, pois ela não quer sair dela, ela quer transformá-la, para que seja melhor. Ela afirma que “nós temos o direito de usufruir plenamente de nossa religião”. Reproduzo abaixo parte do relato de Mirian:

“Já foram feitos vários abaixo assinados, ao conversar com o ministério local muitas irmãs tem sempre a mesma resposta: ‘Ora a Deus, pra que ele possa tomar um caminho, porque não podemos fazer nada’. Em 2018, algumas irmãs que estavam à frente da página Irmãs na Orquestra CCB, que agora se chama, Mulheres Pela Inclusão e Igualdade na CCB, participaram de uma reunião em Bonfim, Campinas-SP (com ata assinada) para que essa causa fosse enviada para a Assembleia (uma reunião anual onde os irmãos se reúnem para alinhar os tópicos para ensinamentos e tratar assuntos pertinentes a igreja e repassar para todas as igrejas do mundo, para que todas estejam sempre alinhadas sob o mesmo consenso). 

Tal documento foi entregue para quem deveria, ou seja, as lideranças da igreja e foi decidido que a situação seria definida por meio de oração na Assembleia Geral  (reunião anual com todos os membros do corpo ministerial do mundo na central do Brás, em SP). Se passaram três anos e nada disso foi feito, ao  pressionar o ministério do Brás (onde tudo é decidido) não houve nenhuma resposta, nem positiva e nem negativa, como se tivesse lavado as mãos e deixado para as irmãs decidir o que fazer. 

As irmãs que estavam à frente deste caso postaram um vídeo onde se “autoliberavam” para tocar nos cultos, pois foi o único meio que encontraram para que a causa tivesse uma repercussão maior e todos vissem que o ministério não estava se posicionando e sequer fizeram o que haviam prometido: levar a questão para a Assembleia e orar para que Deus os instruísse a qual medida tomar. Após a postagem desse vídeo as irmãs receberam vários ataques e foram intimadas e ameaçadas a receber processo pela instituição religiosa.

O que queremos é apenas igualdade em poder servir a Deus com nossos instrumentos na orquestra da mesma forma que ocorre em todos os outros países, não buscamos inserir uma novidade na igreja e sim retomar o lugar que era nosso e a partir de 1961 de uma forma absurda e desonesta nos foi tirado. 

Para que esse direito fosse reconstituído foi feito de tudo conforme é solicitado pela igreja: conversa com o ministério local, uma reunião para a assinatura de uma ata para que fosse levada ao ministério do Brás para ser orado em Assembleia e ver como Deus guiaria nessa causa (pois tudo que é feito na igreja, eles dizem que oram a Deus e aguardam uma resposta). A dúvida que fica é: será que os irmãos têm medo de orar e a resposta de Deus não ser o que eles querem? Pois sabemos o quanto a soberania machista reina em nosso meio, infelizmente.“

Eu como uma mulher evangélica, me vejo na luta das irmãs da CCB. Mulheres são impedidas há séculos de lerem a bíblia, de serem pastoras ou musicistas. De serem pessoas autônomas e plenas no exercício de sua humanidade, em suas religiões. Ambientes como esses, são propícios para abusos morais e violências contra as mulheres. Mulheres são ensinadas que não devem fazer as mesmas coisas que os homens, e que devem submissão aos seus maridos, pastores e anciãos. Essa submissão vem acompanhada com grilhões e prisões que não refletem a missão de Cristo, afinal, Ele nos libertou para a liberdade, e não para a opressão. 

Que nesta Páscoa, os anciãos e cooperadores da Congregação Cristã do Brasil, possam ser tocados pelo exemplo de Jesus de Nazaré e que entendam que as mulheres não querem ser superiores, elas querem o lugar que o próprio Cristo deixou: a liberdade. Se você é da CBB e quer conhecer o movimento de “Mulheres nas Orquestras” conheça a página do instagram: @samaritanaliberta. E você mulher, que quiser ver sua denúncia de machismo em sua religião neste espaço, entre em contato comigo no Instagram @simonydosanjos. Vamos contar e recontar nossas histórias, para que sejam conhecidas e jamais esquecidas! Por mais que o patriarcado cristão tenha tentado apagar as mulheres da história, elas resistiram, e nós sempre resistiremos. Avante! 

*Mirian é um nome fictício que representa quatro mulheres que me procuraram para denunciar essa situação na Congregação Cristã do Brasil, mas temem revelar seus nomes. 

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo