Diálogos da Fé

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A Copa do Mundo vai muito além dos gramados

Quem sabe uma vitória em 2018 nos inspire a mudar esse quadro tão adverso e nos traga de volta o verdadeiro significado da camisa amarela?

'A seleção não é responsável pelas mazelas do País e as pessoas têm todo direito de gostar de futebol e torcer por mais um campeonato'
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O Brasil inteiro está na torcida pelo hexacampeonato. O time de Neymar e companhia vai avançando, evoluindo e fazendo o povo cada vez mais feliz. Que seja assim até a grande final. Nossa brava gente merece. Somos “a pátria de chuteiras” e temos a única seleção pentacampeã mundial, o que nos permite ostentar o título de “o país do futebol”.

Jogadores consagrados, grandes ídolos internacionais e um rei, considerado o maior atleta de todos os tempos. Tudo tão lindo, motivo de tanto orgulho, mas quando olhamos de perto… Enfim, todos já sabemos que o mundo do futebol não é nenhuma maravilha.

A cada copa, pululam denúncias de diversas categorias. No Brasil, sempre surgem os insatisfeitos que aproveitam a ocasião para fazer críticas ao governo e ao povo. É óbvio que a seleção não é responsável pelas mazelas do País e as pessoas têm todo direito de gostar de futebol e de torcer por mais um campeonato.

A bola faz muita coisa girar, inclusive dinheiro. Há, porém, os que dizem que os jogos do Brasil atrapalham a economia, pois o povo, “indolente por natureza”, aproveita pra cultivar seu ócio, sua “vocação” para a improdutividade. Aliás, carnaval e futebol são sempre temas de verdadeiros “tratados sociológicos” sobre o caráter do brasileiro.

Assim como o samba, o futebol é uma cultura de periferia. Às vezes, a única possibilidade de ascensão para garotos negros e pobres. Das várzeas às escolinhas muito bem estruturadas, passando pelas categorias de base de diversos clubes, os talentos vão surgindo, mas não tem lugar pra todo mundo e os critérios de escolha valorizam os supertalentos e os fenômenos. A grande maioria vai ficando pelo caminho.

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A música “Encanto da Paisagem” revela muito mais do que a poesia de Nelson Sargento, é uma crônica sobre a vida nos morros cariocas, com todas as suas aspirações e frustrações, entre elas, o futebol. Mostra a realidade dos meninos que esperam mudar a triste realidade de suas famílias por meio do esporte mais popular do País:

Crianças sem futuro e sem escola

Se não der sorte na bola

Vai sofrer a vida inteira

A esperança de muitas famílias está depositada no talento de seus filhos com a bola nos pés. Nada, porém, é tão simples assim. A vida nas periferias não é fácil e foi-se o tempo em que olheiros garimpavam no futebol de várzea os futuros craques da seleção. É preciso frequentar uma escolinha, que não custa barato. Com sorte, algum projeto social oferece oportunidade. Depois, compor as categorias de base de algum clube e sobressair.

Infelizmente, não há habilidade que sobreviva às inúmeras dificuldades do dia-a-dia de uma favela, por exemplo. Carolina de Jesus, em seu clássico “Quarto de Despejo”, já observava muito mais do que a vocação daqueles meninos: “Vejo os jovens jogando bola. E eles correm pelo campo demonstrando energia. Penso: se eles tomassem leite puro e comessem carne…”

As decorrências da vida também interferem na escolha dos que seguirão no futebol. Realmente, é preciso dar sorte. Mas miséria num país como o Brasil é apenas uma questão de sorte? Sair dela exige mais do que sorte, requer obstinação, abnegação e resistência. Basta olhar a história de alguns dos craques da atual seleção.

O nível de sacrifício de cada garoto e de suas famílias, as privações e sofrimentos, as humilhações, o grau de abuso de certos clubes que exploram um dom em troca de um prato de comida e do dinheiro da passagem.

Quando esses talentos despontam e são vendidos para clubes estrangeiros, ganhando fama e rendendo rios de dinheiro, continuam muitas vezes perseguidos por um estigma, do qual tentam se livrar ao imprimir novas “marcas” às suas vidas. Nem todos têm como negar seu pertencimento a comunidades, sua cor, sua falta de instrução formal. Enquanto a aptidão prevalecer e os resultados forem positivos, nada disso importará.

Contudo, a qualquer falha, deslize ou mau passo se recorre às origens para responsabilizar. O dinheiro abre portas e atrai todo tipo de bajulador e oportunista, talvez por isso muitos ex-jogadores, que ganharam verdadeiras fortunas, depois de alguns anos encontram-se em dificuldades financeiras, envolvidos em escândalos ou aventurando-se em carreiras políticas sem nenhum preparo nem preocupação com a coisa pública.

Desde a copa de 2014, o Brasil viu o clima de instabilidade e polarização se acentuar. As diversas denúncias em torno do mundial, a reeleição de Dilma Rousseff, seguida de uma grave crise de governabilidade, a piora da tensão política e econômica, a perseguição ao ex-presidente Lula. Embora tenhamos chegado à outra copa, ainda se tem a sensação de que 2014 é um ano que não terminou.

Um governo destituído, um golpe em curso, um presidente ilegítimo, um judiciário partidário, um congresso corrompido. A prisão política do ex-presidente mais popular de todos os tempos foi a “cereja do bolo” nesta fase complicada que o País atravessa. Os indicadores sociais demonstram um retrocesso atroz. Faltam empregos, a miséria voltou a crescer, a saúde e até a educação superior estão completamente sucateadas.

Chega a copa e na sequência mais uma eleição. As pré-candidaturas já se lançam ao debate, o congresso vai aprovando na “calada da noite” diversas medidas impopulares, inclusive a liberação do uso de agrotóxicos na agricultura, e a agenda conservadora promovida pelas bancadas do boi, da bíblia e da bala continua se impondo.

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Quando o Brasil saiu da disputa de 2014 numa derrota histórica de 7 X 1 diante da Alemanha já era o prenúncio dos anos difíceis que se seguiriam. Os efeitos de 2014 ainda reverberam no futebol e na cena política do País.

O Brasil perdeu a copa de 2014 e continuou perdendo muito mais. Nosso povo, que tem no futebol um dos seus poucos motivos de orgulho e alegria, vem pagando um preço alto. Voltando a Nelson Sargento, “as mazelas vão por conta do desajuste social”.

Sem escola, sem saúde, sem comida na mesa, sem emprego, sem rumo. O “país do futuro” sem futuro, o “país do futebol” sem craques, pois os meninos bons de bola estão morrendo nos morros, vitimados por balas perdidas que sempre encontram um corpo negro.

O Brasil perdeu a copa de 2014 e perdeu o prumo. Quem sabe uma vitória em 2018 nos inspire a mudar esse quadro tão adverso e nos traga de volta o verdadeiro significado da camisa amarela. O povo não merece pagar o pato. O povo precisa da alegria do futebol, do carnaval, do samba pra suportar tanto sofrimento e descaso. O povo precisa de esperança.

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