Diálogos da Fé

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A Bíblia e a escala 6×1

De acordo com os princípios do Levítico, a taxação das grandes fortunas deveria ser uma das principais pautas da bancada evangélica, assim como a demarcação das terras indígenas

A Bíblia e a escala 6×1
A Bíblia e a escala 6×1
Imagem: iStockphoto
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No calor dos debates sobre a escala 6×1, li a postagem de um pastor evangélico que afirmava que, como no relato da criação do mundo em Gênesis, Deus havia trabalhado seis dias e descansado apenas um, esse era o modelo ideal para o trabalhador.

Esse tipo de argumento, que deturpa uma interpretação bíblica honesta, tem grande apelo entre fiéis como eu, evangélica de berço, exatamente por utilizar as palavras bíblicas. O que essa fala ignora, contudo, é que, além do caráter normativo e quase legal atribuído a um texto que não pretende ser lido sob essa ótica, tal interpretação contradiz todo um repertório de textos libertários do Antigo Testamento.

Por mais óbvio que seja para qualquer brasileiro que trabalha nessa escala que ela desumaniza, privando do descanso e do convívio familiar, escolho aqui dialogar no mesmo terreno que este pastor. Ele defendeu, a partir de um texto bíblico fora de contexto, essa barbárie imposta pelo neoliberalismo ao mundo do trabalho. Proponho, assim, um diálogo com quem considera a Bíblia a principal regra de fé e prática, abordando uma das leis fundamentais do Antigo Testamento, que trata não só dos direitos dos trabalhadores, mas também da necessidade de justiça na organização social.

No Levítico, uma compilação de leis diversas, o capítulo 25 apresenta a proposta do Ano do Jubileu, uma ampla reforma social a cada 50 anos. Após sete ciclos de sete anos, todas as dívidas deveriam ser canceladas, os escravizados libertados, as propriedades familiares devolvidas aos seus donos originais e a terra deveria descansar de qualquer plantio extensivo. Parece radical? Na verdade, essa proposta de justiça social e ambiental é amplamente ignorada por lideranças evangélicas que dizem se fundamentar no texto bíblico.

Vale lembrar que o Levítico está situado logo após o Êxodo, onde a libertação da escravidão é central. Esse ato funda a fé em um Deus que liberta o oprimido e nos dá, coletivamente, a chance de reescrever a história de forma mais justa para todos. Em outras palavras, essa fé, base do cristianismo, tem como coração a crença de que Deus se importa com o sofrimento humano e se enoja com condições de vida indignas. Mais que isso: Deus intervém por meio de atores humanos, pois, da mesma maneira que a opressão é socialmente construída, a libertação é fruto da organização dos que tomam consciência de sua realidade e agem por transformação.

Por que um texto tão atual tem sido esquecido? Quais interesses governam não apenas os púlpitos das igrejas, mas também a vida privada dos cristãos que se dizem seguidores de Jesus? Segundo os princípios do Levítico, a taxação das grandes fortunas deveria ser prioridade para a bancada evangélica, assim como a demarcação das terras indígenas e a luta contra a exploração predatória dos nossos biomas no capitaloceno. No entanto, vivemos o oposto. Lideranças hegemônicas permanecem inertes enquanto parlamentares evangélicos frequentemente defendem os interesses daqueles que se beneficiam do trabalho exaustivo, do uso indiscriminado dos bens naturais e de discursos religiosos que mais aprisionam do que libertam.

Logo teremos eleições majoritárias, um campo de batalha onde conflitos ideológicos e manipulações midiáticas, intensificados desde os protestos de 2013 e o impeachment de 2016, se somam às desavenças familiares e entre amigos. Vivemos sobre um barril de pólvora, e as ameaças ao estado democrático de direito ainda nos rondam. Se os valores éticos e sociais da fé ensinada por Jesus não forem relembrados e praticados, nossa democracia estará em grave risco.
Não é apenas sobre a escala 6×1, mas também sobre as tentativas de golpes consecutivos e a falta de memória política quanto aos 60 anos da ditadura civil-militar. Um descuido basta para que direitos sejam perdidos. Por isso, à luz do Dia da Consciência Negra, afirmo: é dever de todo cristão adotar uma leitura crítica da Bíblia e valorizar a herança de luta daqueles que nos precederam na construção de uma sociedade mais justa.

Finalizo trazendo à memória Agostinho José Pereira, o “Lutero Negro”, que fundou o primeiro espaço protestante no Brasil. Ex-escravizado, sua voz ainda ecoa, ensinando que o Evangelho só tem sentido quando reverbera na sociedade. Essa reverberação exige o enfrentamento de qualquer forma de opressão que rouba a dignidade e aprisiona na injustiça. Este é o desafio que o Cristo libertador propôs ao seu coletivo de seguidores. Seja na luta contra a escala 6×1, pela taxação das grandes fortunas ou em pautas ambientais, não podemos nos calar. Avancemos!

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