Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

“Paz sem voz não é paz, é medo.” Ou a política do Natal

Quando certos líderes religiosos transformarão discursos de ódio em ações a favor da convivência pacífica e de respeito às diferenças?

A paz e a justiça merecem uma peregrinação
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O primeiro domingo de dezembro é significativo para o calendário cristão: é o primeiro domingo do Advento, início de um tempo no qual se celebra em missas católicas e em cultos evangélicos, formado pelos quatro domingos que antecedem o Natal.

Advento é palavra de origem latina e quer dizer “chegada”, “aproximação”, “vinda”, o tempo de uma contagem regressiva para se celebrar a expectativa em torno do nascimento do bebê de Nazaré, Jesus, presença encarnada do Deus Criador entre os seres humanos, segundo a fé dos seus seguidores. Neste tempo é ressaltada, em especial, uma dimensão do sentido da vida e das ações de Jesus: a paz.

Paz é palavra que ecoa em nossos dias por meio de discursos, textos, poemas, canções, especialmente quando recebemos notícias relacionadas aos mais de 50 conflitos armados no mundo e aos atos terroristas que cada vez mais tiram a paz.

Este clamor está fortemente presente também nos conflitos armados vividos nas grandes cidades brasileiras, que envolvem infratores de toda ordem, gente honesta das periferias e as ações policiais violentas. O apelo por paz está também nos interiores deste nosso grande Brasil, nas disputas por terra, entre quem trabalha nela para viver e grandes proprietários e seus pistoleiros.

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A Bíblia cristã ressalta o lugar da paz para a vida digna. Fala do “shalom”, não a paz que se sente, como mero sossego, mas a paz que se vive em todas as relações: as familiares, as do trabalho, as políticas, as religiosas. Um dos anúncios da chegada do Messias-criança, o Deus Conosco, fala dele como “Príncipe da Paz”, que abriria caminho para que “as armas e as botas sujas de sangue sejam queimadas”. Quando Jesus de Nazaré veio ao mundo, seu nascimento foi entendido como um anúncio de paz na terra a todos aqueles de boa vontade.

E há a outra magnífica imagem nos escritos bíblicos, com um ensinamento que não podemos desprezar. É uma das sentenças mais belas: “A justiça e a paz se beijaram” (Salmos 85.10). O poeta coloca aí uma afirmação significativa: justiça e paz são unidas por um laço afetivo e harmônico. Só há justiça quando há paz e só há paz quando há justiça.

Por isso, paz no sentido judaico-cristão é “shalom”, algo que se vive e se constrói. Não um sentimento intimista, mas uma ação política, da vida em comum, do bem viver coletivamente.

Para reavivar este ensino e esta afirmação de fé, o Conselho Mundial de Igrejas tem reafirmado um convite a cristãs e cristãos e a seres humanos de boa vontade de todo o mundo: engajarem-se numa Peregrinação de Justiça e Paz. Ele tem sido assumido pelo próprio conselho em suas diversas atividades, direcionando-as à ênfase da paz com justiça.

Parênteses importante: o Conselho Mundial de Igrejas é uma associação de 350 igrejas cristãs de todos os continentes, evangélicas e ortodoxas, formada em 1948 (a Igreja Católica Romana participa como observadora fraterna). É uma das mais significativas expressões do movimento ecumênico mundial em ações concretas nos campos da unidade cristã, da promoção da vida e do diálogo com as outras religiões.

O convite do CMI para a Peregrinação de Justiça e Paz tem uma mensagem significativa: cristãs e cristãos estão numa jornada neste mundo, a caminho de um “outro mundo possível” junto com gente de boa vontade. Devem viver e trabalhar por isso. A preposição “de” faz toda a diferença: não uma peregrinação pela justiça e pela paz, mas “de” justiça e paz.

Significa que cristãs, cristãos e todos que clamam por uma vida digna precisam seguir no caminho da busca da paz com justiça, apoiando políticas públicas que superem a ideologia da “segurança”, que só faz tirar a paz e impor injustiças, uma “paz sem voz [que] não é paz, é medo”, como diz a letra da música de Marcelo Yuka, ex-Rappa. Nesse sentido, quem busca paz com justiça sustenta políticas pacificadoras, afirmativas, que se baseiam em relações dignas e íntegras entre todos, sem distinção de classe, cor, gênero, idade, geografia ou qualquer outra.

Outro parênteses: é triste ver a frequência de pregações e canções na boca de líderes religiosos midiáticos que estimulam ações violentas contra “pecadores” e “pervertidos”, “dominados por Satanás”, e ainda apoiam campanhas políticas baseadas no estímulo ao armamentismo e à vingança contra bodes expiatórios sociais.

Acabam por ser promotores da intolerância, de agressões verbais e físicas, da violência em suas diferentes formas. E quando falam de paz, enfatizam uma paz individual, intimista, meritória, sem voz. Quando chegará o dia no qual os líderes religiosos converterão seus discursos midiáticos, falados e cantados, em palavras e ações que tornem possível que a justiça e a paz se beijem?

Portanto, neste tempo de Advento, em que vidas inocentes perecem por conta de políticas injustas, seja em terras distantes seja na próxima esquina, temos uma oportunidade. Sejamos nós, religiosos ou não, capazes de aceitar o convite por uma peregrinação de justiça e paz, na esperança de que um “outro mundo é possível”.

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