Diálogos da Fé

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“Essa é bem rosinha”: conduta que envergonha todos os brasileiros

“Brincadeiras” como esta dos torcedores na Rússia têm exposto problemas sérios de nossa sociedade

Esta turma atravessou o planeta para mostrar a sua estupidez
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Talvez eu não seja o mais qualificado nem o mais autorizado a analisar a questão. Acredito, no entanto, que pode ser uma oportunidade de lançar outro ponto de vista sobre o assunto, bastante divulgado e discutido nas redes sociais, mas nem sempre com o devido cuidado, especialmente por se tratar de um problema fortemente arraigado em nossa sociedade.

De qualquer forma, o triste episódio protagonizado por brasileiros durante a Copa da Rússia é grave e nos impele a pensar na necessidade de desconstrução de certas masculinidades, sobretudo essa produzida por homens brancos, ocidentais, geralmente heterossexuais e de classe média alta, detentores de poder institucional e financeiro e que fazem uso de várias modalidades de violência para vilipendiar ou subjugar o outro (seja em relação a gênero e raça, seja por fatores socioeconômicos).

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O fato pode ser classificado de diversas formas, conforme as variáveis implicadas. Machismo, já que expressa um comportamento aviltante em relação a uma mulher. Misoginia, uma vez que se tratou de uma violência dissimulada e ao mesmo tempo agravada pelo escárnio. Racismo, pois a descrição do órgão genital expressou também um tipo ideal de mulher. Assédio, além de ferir a liberdade e a dignidade da moça, foram extremamente inconvenientes.

Há ainda aqueles que avaliam o acontecimento como falta de respeito ou grosseria. Foi, sem dúvida alguma, uma conduta desprezível que encheu de vergonha todos os brasileiros. Esse comportamento reflete, porém, atitudes frequentes, praticadas diariamente contra as mulheres e que, por força do machismo e do sexismo fortemente enraizados em nosso País, muitas vezes não são denunciados nem causam indignação.

Da mesma forma que quando se ofende um negro todos os negros são ofendidos, quando se ofende uma mulher, todas as mulheres são ofendidas. Que mulher não se sentiu humilhada diante daquela cena? Mostrou-se ali a face mais vil do machismo, ou seja, reduziram a mulher a uma genitália e submeteram-na a uma violência cruel, uma vez que ela não entendia português, foi enganada e induzida a proferir ofensas contra si mesma.

Aquilo foi tudo, menos brincadeira. Não dá pra classificar como brincadeira um ato que implique humilhação e que ocorre sem o consentimento e, nesse caso, sem o conhecimento da outra parte. Machismo, misoginia, racismo, homofobia, assédio, nada disso é brincadeira. Como comportamentos que causam violência e morte podem ser considerados brincadeira?

Naquela atitude não foram expostos alguns jovens descolados ou embriagados que curtiam suas férias na Copa do Mundo. Foi exposta uma sociedade e uma cultura colonial, patriarcal, branca, heteronormativa e racista. Aqueles homens de classe média, com formação superior, poder aquisitivo e todos os requisitos que os enquadram na categoria de “pessoas de bem” evidenciaram a pusilanimidade da sociedade brasileira, tornando-se o reflexo deste período doentio e triste.

Existem, entretanto, os que se arvoram na defesa dos envolvidos. Percebe-se até uma conivência de parte da mídia, que insiste em tratar o episódio como brincadeira de mau gosto ou falta de educação. Em tempos de indignação seletiva, é natural que isso aconteça, mas não se pode perder de vista o fato de que sempre houve condescendência como o machismo, o racismo e a misoginia praticados pela elite.

Sendo bem direto, como seria tratado o caso se os homens que assediaram a moça fossem negros? E se em vez de uma “bem rosinha” tivéssemos uma “bem pretinha”? Obviamente, a carga de racismo no ocorrido é bem evidente, mas nada é tão ruim que não possa piorar (ainda que hipoteticamente).

Claro que essa provocação é pra incomodar a branquitude, inclusive para fazê-la rever suas construções de masculinidades. Há comportamentos execráveis que, apesar de largamente disseminados em nossa cultura, devem ser reavaliados e desconstruídos. Naturalizar atitudes como a desses brasileiros na Rússia ou mesmo as práticas corriqueiras dos estádios ou os hábitos das torcidas não nos ajuda a erigir uma sociedade mais humana nem mais justa.

Rir daquela cena tão machista e misógina, rir de uma piada ou gozação de cunho racista, ou mesmo achar normal e classificar como brincadeira de mau gosto, além de questionável é deplorável. Quem não se sentiu minimamente envergonhado ou não condenou aquela conduta inscreve-se na mesma lógica dos que praticam o racismo por meio de troças ou anedotas. Em outras palavras, os protagonistas do vídeo foram machistas e misóginos e quem foi conivente também o é. Da mesma forma que quem ri de piadas que discriminam negros, índios e outras etnias é racista.

Aqueles homens “bem branquinhos”, diferentemente da maioria dos “bem pretinhos” como eu, tinham dinheiro suficiente pra estar na Rússia prestigiando nossa seleção e aproveitaram para assediar uma “bem rosinha”, deixando todos os brasileiros “bem coradinhos” de tanta vergonha. Demonstraram claramente seu desprezo pelas “bem pretinhas” e por todas as mulheres fora dos “padrões” que sua poderosa macheza estabeleceu como ideais.

Eu poderia simplesmente dizer: “Eles que são brancos, lá se entendam”. Talvez alguém possa questionar ao ler esse texto: “E por que racializar essa pauta?” Ora, por que não racializar? Quem inventou o termo “coisa de preto”? O hábito de contemporizar as “coisas de branco” ou as “coisas de macho”, tão usual e recorrente em nosso meio, é parte fundamental de uma estrutura racista que permite, entre outras coisas, que episódios como esse da Rússia sejam tolerados e tratados apenas como uma brincadeira motivada pela cultura do futebol ou pela bebedeira e empolgação do momento.

Submeter uma mulher a uma situação vexatória como aquela infringe muito mais do que regras de boa conduta e educação. Não viola apenas a civilidade, o bom senso ou o decoro. Fere a dignidade, transgride valores e, uma vez que cada indivíduo é um complexo de relações, revela as estruturas corrompidas de uma sociedade profundamente marcada pela hierarquização de gênero, raça e classes.

Cá entre nós, ainda bem que não tinha nenhum “bem pretinho” no meio daqueles brancos. Só assim eles levam a culpa.

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