Diálogos da Fé

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‘A guerra é santa, mas o sexo é obsceno’: tudo distorcido!

Holy War, de Alicia Keys, fala sobre se importar com o outro e pode ilustrar o episódio do navio Aquarius. Imigrantes não deveriam ser vistos como estorvo

629 pessoas, entre elas sete grávidas e 123 menores sozinhos, foram resgatadas no Mediterrâneo. Itália e Malta se recusaram a recebê-los
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“Se a guerra é santa e o sexo é obsceno está tudo distorcido” diz uma canção da compositora e intérprete estadunidense Alicia Keys que me impressionou muito. Eu não conhecia as músicas dela até ter participado de uma palestra, semanas atrás, em que Holy War foi apresentada para ilustrar as ideias expostas.

Confesso que a música e as imagens do clip me impactaram. Letra sensível, música envolvente, afinação evangélica com as demandas do tempo em que vivemos. Segue uma tradução livre:

Se a guerra é santa e o sexo é obsceno

Então está tudo distorcido neste sonho lúcido

Batizados em limites, educados em pecado

Divididos por diferença, sexualidade e pele

Então, podemos odiar uns aos outros e temer uns aos outros

Podemos construir estas paredes entre nós

Golpe por golpe e tijolo por tijolo

Mantenha-se trancado, mantenha-se trancado

Talvez devêssemos amar alguém

Talvez pudéssemos nos importar um pouco mais

Talvez pudéssemos amar alguém

Em vez de polir as bombas de guerra santa

E se o sexo fosse santo e guerra fosse obscena?

E se não estivesse distorcido? Que sonho maravilhoso!

Viver por amor, sem medo do fim

O perdão é a única verdadeira vingança

Então, podemos curar uns aos outros

E sentir uns aos outros

Podemos quebrar essas paredes entre nós

Golpe por golpe e tijolo por tijolo

Mantenha-se aberto, mantenha-se aberto

Podemos curar uns aos outros

E sentir uns aos outros

(…)

Talvez devêssemos amar alguém

Talvez pudéssemos nos importar um pouco mais

Talvez pudéssemos amar alguém

Em vez de polir bombas de guerra santa

E se o amor fosse santo e ódio fosse obsceno?

Devemos dar vida a este belo sonho

Porque a paz e o amor não estão tão longe

Se cuidarmos de nossas feridas

Antes de cicatrizarem

Cuidar de nossas feridas

Antes de cicatrizarem

Esta canção me veio à mente nestes dias quando li as notícias sobre a barreira levantada pelos governos da Itália e de Malta, ao se recusarem a receber em suas terras 629 pessoas, entre elas sete grávidas e 123 menores sozinhos, resgatadas em águas do Mar Mediterrâneo pelo navio Aquarius, fretado pela ONG SOS Méditerranée.

Essas pessoas deixaram a África em busca de sobrevivência na Itália (país mais próximo pelo mar) em barcos frágeis, vindas majoritariamente da Líbia, da Eritréia, de Gana, da Nigéria e do Sudão, e foram reunidas em seis diferentes operações de salvamento.

Os imigrantes ficaram no mar de 20 a 30 horas antes do resgate. Alguns estão doentes, têm ferimentos de bala, por terem passado por regiões em conflito armado, ferimentos da viagem, sofrem consequências de afogamento ou hipotermia, têm queimaduras químicas graves, muitos têm sarna.

Horas depois do resgate do Aquarius, após uma disputa diplomática que envolveu a Itália e Malta, que haviam recusado o desembarque do navio, além de apelos da ONU e críticas da França, finalmente a Espanha autorizou que o navio atracasse em suas terras.

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Este grupo não é o primeiro e nem será o último a forçar o debate sobre a crescente onda de imigração que o mundo experimenta. Catástrofes naturais e guerras já foram as grandes causas de migrações.

Hoje a elas se somam, em alto grau, a pobreza e a fome e as ações excludentes baseadas em intolerância, demonstrações de que o sistema imposto pelo colonialismo, desde o século XVI, culminando com o triunfo do capitalismo globalizado, deu muito certo para os Impérios que os promoveram mas não para a humanidade que se deteriora.

Deterioração que se dá na negação da vida plena ao Sul Global, explorado e extorquido por séculos, e na inumanidade do Norte, que não assume a responsabilidade pela crise humanitária em curso e ainda se recusa a gestos de reparação.

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Sim, como canta Alicia Keys, está tudo distorcido! Os imigrantes do Sul não deveriam ser vistos como estorvos, como avaliaram os governos da Itália e de Malta, e o fazem outros governos ao Norte que trabalham na construção de muros e no fechamento mais duro de fronteiras, no cultivo de hostilidade com os que buscam abrigo. Se houvesse justiça nas relações internacionais, estes imigrantes seriam vistos como aqueles que buscam seus direitos diante do que lhes foi tomado durante séculos: as riquezas naturais de seus países, sua força de trabalho e sua dignidade.

Nestes tempos de deterioração da humanidade e da demonstração da face mais diabólica do capitalismo global, é preciso, cada vez mais recuperar o valor humano da hospitalidade. Como canta Alicia Keys, “quebrar as paredes entre nós, golpe por golpe, tijolo por tijolo”, amar e curar nossas feridas ao invés de “polir bombas de uma guerra santa”.

Os escritos da Bíblia cristã corroboram este ideal quando se referem aos povos do oriente, os nômades, eternos estrangeiros, estranhos. Eram os hebreus, os habiru, aqueles que viviam de atravessar fronteiras em busca de vida. E estes eram alvo da ação amorosa de Deus. Deus caminhava com eles. Acolher o forasteiro, o estranho, na perspectiva desses escritos, era o mesmo que acolher o próprio Deus. Daí o valor da hospitalidade.

Há muitas histórias sobre isto nos textos bíblicos, e entre elas, as que contam que Jesus de Nazaré foi acolhido na casa de muitas pessoas consideradas “estranhas”, algumas de outras culturas e religiões, conviveu e comeu com elas. Por isso ele disse aos seus discípulos: “todas as vezes que fizerem isso [acolher o estranho], a mim estarão fazendo”.

Assim seja com os governos do Norte, que são ricos e vivem no bem-estar graças às riquezas do Sul, que hoje clama por hospitalidade. Assim seja no nosso cotidiano, especialmente com quem está logo ali.

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