Diálogos da Fé
Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões
Diálogos da Fé
‘A guerra é santa, mas o sexo é obsceno’: tudo distorcido!
Holy War, de Alicia Keys, fala sobre se importar com o outro e pode ilustrar o episódio do navio Aquarius. Imigrantes não deveriam ser vistos como estorvo
“Se a guerra é santa e o sexo é obsceno está tudo distorcido” diz uma canção da compositora e intérprete estadunidense Alicia Keys que me impressionou muito. Eu não conhecia as músicas dela até ter participado de uma palestra, semanas atrás, em que Holy War foi apresentada para ilustrar as ideias expostas.
Confesso que a música e as imagens do clip me impactaram. Letra sensível, música envolvente, afinação evangélica com as demandas do tempo em que vivemos. Segue uma tradução livre:
Se a guerra é santa e o sexo é obsceno
Então está tudo distorcido neste sonho lúcido
Batizados em limites, educados em pecado
Divididos por diferença, sexualidade e pele
Então, podemos odiar uns aos outros e temer uns aos outros
Podemos construir estas paredes entre nós
Golpe por golpe e tijolo por tijolo
Mantenha-se trancado, mantenha-se trancado
Talvez devêssemos amar alguém
Talvez pudéssemos nos importar um pouco mais
Talvez pudéssemos amar alguém
Em vez de polir as bombas de guerra santa
E se o sexo fosse santo e guerra fosse obscena?
E se não estivesse distorcido? Que sonho maravilhoso!
Viver por amor, sem medo do fim
O perdão é a única verdadeira vingança
Então, podemos curar uns aos outros
E sentir uns aos outros
Podemos quebrar essas paredes entre nós
Golpe por golpe e tijolo por tijolo
Mantenha-se aberto, mantenha-se aberto
Podemos curar uns aos outros
E sentir uns aos outros
(…)
Talvez devêssemos amar alguém
Talvez pudéssemos nos importar um pouco mais
Talvez pudéssemos amar alguém
Em vez de polir bombas de guerra santa
E se o amor fosse santo e ódio fosse obsceno?
Devemos dar vida a este belo sonho
Porque a paz e o amor não estão tão longe
Se cuidarmos de nossas feridas
Antes de cicatrizarem
Cuidar de nossas feridas
Antes de cicatrizarem
Esta canção me veio à mente nestes dias quando li as notícias sobre a barreira levantada pelos governos da Itália e de Malta, ao se recusarem a receber em suas terras 629 pessoas, entre elas sete grávidas e 123 menores sozinhos, resgatadas em águas do Mar Mediterrâneo pelo navio Aquarius, fretado pela ONG SOS Méditerranée.
Essas pessoas deixaram a África em busca de sobrevivência na Itália (país mais próximo pelo mar) em barcos frágeis, vindas majoritariamente da Líbia, da Eritréia, de Gana, da Nigéria e do Sudão, e foram reunidas em seis diferentes operações de salvamento.
Os imigrantes ficaram no mar de 20 a 30 horas antes do resgate. Alguns estão doentes, têm ferimentos de bala, por terem passado por regiões em conflito armado, ferimentos da viagem, sofrem consequências de afogamento ou hipotermia, têm queimaduras químicas graves, muitos têm sarna.
Horas depois do resgate do Aquarius, após uma disputa diplomática que envolveu a Itália e Malta, que haviam recusado o desembarque do navio, além de apelos da ONU e críticas da França, finalmente a Espanha autorizou que o navio atracasse em suas terras.
Leia também: “Por que os evangélicos só pensam em sexo?”
Este grupo não é o primeiro e nem será o último a forçar o debate sobre a crescente onda de imigração que o mundo experimenta. Catástrofes naturais e guerras já foram as grandes causas de migrações.
Hoje a elas se somam, em alto grau, a pobreza e a fome e as ações excludentes baseadas em intolerância, demonstrações de que o sistema imposto pelo colonialismo, desde o século XVI, culminando com o triunfo do capitalismo globalizado, deu muito certo para os Impérios que os promoveram mas não para a humanidade que se deteriora.
Deterioração que se dá na negação da vida plena ao Sul Global, explorado e extorquido por séculos, e na inumanidade do Norte, que não assume a responsabilidade pela crise humanitária em curso e ainda se recusa a gestos de reparação.
Leia também:
Uma guerra de espíritos: estupidez x sabedoria nestes dias maus
Sim, como canta Alicia Keys, está tudo distorcido! Os imigrantes do Sul não deveriam ser vistos como estorvos, como avaliaram os governos da Itália e de Malta, e o fazem outros governos ao Norte que trabalham na construção de muros e no fechamento mais duro de fronteiras, no cultivo de hostilidade com os que buscam abrigo. Se houvesse justiça nas relações internacionais, estes imigrantes seriam vistos como aqueles que buscam seus direitos diante do que lhes foi tomado durante séculos: as riquezas naturais de seus países, sua força de trabalho e sua dignidade.
Nestes tempos de deterioração da humanidade e da demonstração da face mais diabólica do capitalismo global, é preciso, cada vez mais recuperar o valor humano da hospitalidade. Como canta Alicia Keys, “quebrar as paredes entre nós, golpe por golpe, tijolo por tijolo”, amar e curar nossas feridas ao invés de “polir bombas de uma guerra santa”.
Os escritos da Bíblia cristã corroboram este ideal quando se referem aos povos do oriente, os nômades, eternos estrangeiros, estranhos. Eram os hebreus, os habiru, aqueles que viviam de atravessar fronteiras em busca de vida. E estes eram alvo da ação amorosa de Deus. Deus caminhava com eles. Acolher o forasteiro, o estranho, na perspectiva desses escritos, era o mesmo que acolher o próprio Deus. Daí o valor da hospitalidade.
Há muitas histórias sobre isto nos textos bíblicos, e entre elas, as que contam que Jesus de Nazaré foi acolhido na casa de muitas pessoas consideradas “estranhas”, algumas de outras culturas e religiões, conviveu e comeu com elas. Por isso ele disse aos seus discípulos: “todas as vezes que fizerem isso [acolher o estranho], a mim estarão fazendo”.
Assim seja com os governos do Norte, que são ricos e vivem no bem-estar graças às riquezas do Sul, que hoje clama por hospitalidade. Assim seja no nosso cotidiano, especialmente com quem está logo ali.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.
Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.