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Deus falou nas areias de Copacabana

A gravidade da situação aparece quando a inumanidade se naturaliza

Márcio, pai de vítima do coronavírus, recoloca cruzes arrancadas por homens de protesto em memória dos que morreram em função da Covid-19. Foto: Reprodução Márcio, pai de vítima do coronavírus, recoloca cruzes arrancadas por homens de protesto em memória dos que morreram em função da Covid-19. Foto: Reprodução
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Ainda estão vivas na mente as imagens da manifestação da ONG Rio de Paz, coordenada pelo pastor presbiteriano Antonio Carlos Costa, na Praia de Copacabana, Rio de Janeiro, na semana passada. Eram 100 covas rasas abertas nas areias da praia. Para cada cova, uma cruz e bandeiras do Brasil penduradas em algumas delas. Um número simbólico para representar os 45 mil mortos pela COVID-19 em nosso país, em três meses, e chamar a atenção das autoridades para assumirem sua responsabilidade. Algumas faixas espalhadas pela areia diziam: “Brasil na contramão do mundo”, “Brasil, país das covas”.

De repente, enquanto os voluntários ainda terminavam de organizar os símbolos nas areias, um homem, idoso, bem vestido, de tênis, sem máscara, óculos de sol, sai do calçadão e passa pelo meio do cenário arrancando as cruzes. Enquanto arrancava, gritava com raiva: “Se eles têm o direito de botar, eu tenho direito de tirar. Isto é um atentado contra as pessoas. Isto aí é terror. Tá criando pânico, usando as cruzes, a cruz de Jesus para aterrorizar o povo. Sacanagem!”. Depois soubemos que o destruidor raivoso é Hequel da Cunha Osório, 78 anos, aposentado que já foi presidente da Companhia Estadual de Gás (CEG Rio) e tem uma empresa de consultoria de engenharia.

O coordenador e os voluntários não reagiram. Igual atitude teve a plateia do calçadão até certo momento, quando um outro homem entra na cena. Ele caminhava no calçadão quando viu o vândalo em ação. De meia idade, vestia calção, calçava chinelos, trazia uma camiseta pendurada no ombro e usava máscara. Num ímpeto, entrou no cenário e passou a fincar uma a uma as cruzes derrubadas. Com paixão, ele também gritava: “Meu filho morreu, 25 anos… É do povo, uma manifestação do povo! Tem que respeitar! Vai ter cruz, sim, foi meu filho! Eles podem derrubar mil vezes que eu vou recolocar mil vezes!” Do calçadão, foi xingado, enviado para a Venezuela e aconselhado a baixar o tom da raiva, enquanto Hequel Osório assistia à cena segurando uma bandeira do Brasil que retirou do cenário.

Mais tarde fomos informados que o homem sofrido é o taxista Márcio Antonio do Nascimento Silva, 55 anos. Ele caminha pelo calçadão pelo menos uma vez por semana na busca de superar a dor da perda do filho, Hugo Dutra do Nascimento Silva, 25 anos, morto pela Covid-19, em 18 de abril.

Enquanto o pastor Antonio Carlos dava uma entrevista no calçadão, Hequel Osório se aproximou e se juntou a outro idoso, com máscara no pescoço, segurando uma bicicleta. Ele xingava o pastor aos gritos, esbravejava agressões verbais e o mandava “cobrar dos governadores”. O pastor, com dificuldade, dizia à reportagem: “O que nós queremos é um país menos desigual. No qual a santidade da vida humana seja respeitada”.

Hequel Osório não respondeu às perguntas de jornalistas, mas postou em um grupo de Whatsapp, junto com foto do ato: “Alguém viu minha indignação derrubando cruzes que a esquerda montou em Copacabana hoje? Não resisti”.

Já Márcio Antônio Silva falou a vários órgãos da imprensa e registrou sua atitude como “Indignação com a falta de respeito”. Ele disse: “Não tinha nada a ver com ele, não estava fazendo mal nenhum a ele, meu Deus do Céu! Eu estava tão feliz quando eu vi uma homenagem às vítimas. Senti no coração aquela saudade. Era como se fosse a cruz do túmulo do meu filho que não consegui velar. Derrubar a representação de uma vítima, de uma pessoa, isto não é liberdade de expressão, isto é raiva, ódio. Cada cruz que ele estava arrancando ali era uma pessoa. Meu filho não é um número. São mais de 40 mil mortos e estes são pessoas de todas as tendências políticas. Meu Deus do Céu que loucura é esta, que falta de humanidade é esta?!”

Sim, Márcio Antônio, podemos chamar o que você viu de inumanidade. Héquel Osório e seus apoiadores não foram atingidos pela Covid-19, não se importam com os demais que o são, e se alimentam da ideologia que reforça o individualismo e da adoração por mitos que são seus espelhos. Não é à toa que Hequel Osório atribuiu o ato público de solidariedade a uma política “de esquerda” e o senhor da bicicleta que o apoiou repetiu, aos gritos, a frase do Presidente Jair Bolsonaro: “cobre dos governadores!”.

Quando alguém atribui solidariedade a uma ação partidária e é levado a destruí-la, desprezando a razão que a motiva, este alguém e seus apoiadores são inumanos. Não são desumanos (quem pratica crueldade ou violência contra seus iguais). Vão além disso. Mostram-se desprovidos de sentimentos de respeito, consideração, amor, generosidade, com atitudes que revelam a ausência da identidade humana. Não se revelam humanos, são “inumanos” ou revestidos de “inumamidade”.

A gravidade da situação aparece quando a inumanidade se naturaliza. Quando não nos importamos com a existência dela. E inumanos se multiplicam até sentarem numa cadeira da Presidência da República e serem exaltados por outros inumanos.

Por isso, precisamos dos humanos, Rio de Paz, Márcio Antônios e quem mais vier, levantando a voz de da indignação pela vida e não contra a vida. O grito pelo filho morto era como se Deus gritasse contra o escárnio de Jesus, vítima de um julgamento injusto, baseado em convicções, finalizado por um ‘juiz’ que lava as mãos. Como o grito de Deus depois de Jesus receber a pena de morte, de ser torturado, receber na cabeça uma debochada coroa de espinhos e ser pregado com pregos numa cruz de madeira, e ainda ouviu do público, como o do calçadão, que se deleitava com a crueldade e a injustiça: “Desce da cruz. Salva-te a ti mesmo”.

Deus gritou pela boca e pelas mãos do Márcio Antonio, e já gritava com as covas rasas, as cruzes e as faixas de denúncia da inumanidade dos próprios governantes. Quem sabe, com o grito de Deus, se cumpra a oração do Papa Francisco, em 13 de junho: “Peçamos a graça de ir ao encontro dos outros como a um irmão e de não ver ninguém como inimigo”.

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