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BBB, resistência e degradação do negro no meio social

Causa espanto quando pessoas negras precisam desenhar a estrutura social da qual alguns se beneficiam e outros são estigmatizados

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O BBB 2019 tem levantado discussões sobre as lacunas na formação dos cidadãos brasileiros a respeito do entendimento da formação social e política do país. Na última sexta-feira 25, o participante Rodrigo França pontuou, didaticamente, informações sobre a nossa história negra no Brasil, talvez discutidas de maneira rasa em salas de aula e também distante da vida cotidiana dos demais participantes que ouviram atentamente as explicações trazidas por ele. Me causa certo espanto quando, em um grupo de adultos, pessoas negras precisam desenhar a estrutura social da qual alguns se beneficiam e outros são estigmatizados.

Coincidência ou não, os que se afastam da compreensão mais abrangente sobre a sociedade no que tange às opressões de raça são justamente os que se beneficiam da estrutura racista. É um desafio constante tentar explicar para as pessoas que as piadas e os vícios de linguagem aprendidos na sua socialização contribuem, em certa medida, para a manutenção das opressões e para a interpretação do lugar do negro no meio social. Um exemplo disso é que no mesmo programa em que Rodrigo desenhou a história do embranquecimento social do Brasil, a participante Paula disse, ao relatar um crime grave, que ficou surpresa ao perceber que o autor do crime era um ​branquinho que morou na Austrália ou no Canadá, q​uando pensou que apareceria um “faveladão”.

Às respostas ao posicionamento tanto de Rodrigo quanto de Paula vieram rápidas nas redes sociais e mostraram a necessidade de aproximar as pessoas das contribuições que diversos autores brasileiros trouxeram para nos ajudar a pensar saídas para um país miscigenado e estigmatizado no período pós-abolição.

Este período, que começou a tomar forma a partir de 1870 com a lei do sexagenário, incutiu no aspecto social e econômico um novo problema a ser enfrentado: a inserção do negro na vida social do país e a relação econômica estabelecida a partir de então. Os parâmetros da vida escravocrata não deveriam ser mais as referências de assimilação do negro na sociedade. No entanto, o que surge são releituras do modo de vida do trabalho compulsório agora inserido no sistema capitalista de produção, mantendo as estruturas do período anterior e dificultando o entendimento da liberdade individual de cada ator social.

Surge daí a necessidade de resistir e de elaborar as questões políticas de um país ainda frágil na concepção da sua identidade nacional. As noções de integração e coesão vão sendo desenhadas sociologicamente ao mesmo tempo em que a sociedade não consegue identificar o negro como detentor de respeito mínimo.

A subalternidade evidenciada por teorias científicas da época – como em Lombroso na Itália e Nina Rodrigues no Brasil – reforçam a ideia de uma evolução social que o negro não consegue alcançar e aponta a existência de sangue negro no povo brasileiro como responsável pela degradação da sociedade e declínio da civilização do país.

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Como resultado de todas essas concepções está a resistência que os pretos e mulatos precisam criar em um espaço multicultural com a presença de imigrantes que se somam à população. A dificuldade enfrentada é encontrar consistência e unidade na massa social do Brasil.

Um Brasil repleto de complexidades

Em dois momentos distintos da história, Oliveira Viana (1920) e Florestan Fernandes (1964) discutiram um Brasil repleto de complexidades. Os apontamentos feitos na década de vinte por Oliveira Viana sobre a condição dos mestiços na sociedade paulista e as dificuldades analisadas por Florestan Fernandes no mesmo meio social quarenta anos depois demonstram as consequências de uma ordem social sobre a outra.

Viana demonstra cuidadosamente a origem de privilégios políticos, econômicos e sociais ao analisar a distribuição da terra ainda no período colonial. As sesmarias eram distribuídas de modo a privilegiar a aristocracia territorial, como diz Viana: ​“Nada mais curioso do que acompanhá-los nos seus esforços para limitar e concentrar nas suas mãos opulentas os privilégios políticos, de modo a fazê-los uma consequência da propriedade da terra.”

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Sequencialmente, o acolhimento pela sociedade paulista, de imigrantes europeus que detinham privilégios apenas por serem brancos, dando-lhes oportunidade de trabalho propiciou que estes se tornassem, anos depois, parte integrante da velha elite territorial corroborando com a negação do espaço do negro na sociedade.

Esse caminho percorrido pelas novas elites brancas do país evidenciou a manutenção das estruturas que julgam negros e mulatos como uma classe à parte de maneira inferior e diferente dos brancos em relação aos direitos políticos. O entendimento de que o negro apresenta variedade psíquica e diferentes índoles são apresentadas por Viana fazendo uma estratificação das diversas tribos negras trazidas para o Brasil. Os mestiços e mulatos apresentam-se como pessoas de condições degradadas.

Toda essa trajetória perversa relatada por Viana desemboca na tentativa de resistência e integração do negro na sociedade capitalista da década de sessenta apresentados por Fernandes. Cerceados pelo bloqueamento não inclusivo da sociedade brasileira, negros e mulatos precisam criar resistência e formas de subverter a ordem social estabelecida.

Essa rebelião que se anunciava, segundo Fernandes, não tinha um caráter revolucionário contra a ordem social, mas era uma forma de reivindicar que os direitos sociais e a dignidade vivenciada pela população de pele branca se estendessem a eles sem discussões mais profundas das estruturas herdadas do antigo regime.

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Assim como Viana, Fernandes também aponta que o branco reivindicava sua condição de classe dominante, porém desta vez de forma não explícita com o agravante da ordem

social competitiva em que estava inserida essa forma de inferiorização do negro e do mulato.

A contribuição trazida pelos movimentos reivindicatórios, como a Frente Negra Brasileira, demarcava a necessidade de reeducar e preparar a massa de negros e mulatos para o enfrentamento das estruturas de manutenção de poder e desigualdade.

Uma contribuição trazida pelos dois autores diz respeito à análise estabelecida na forma como se misturaram brancos europeus, negros africanos e índios propiciando uma estrutura complexa de depreciação ou privilégios relacionada com a economia de cada época.

Viana conclui, de forma tacitamente refinada e complexa para os tempos atuais, a necessidade de apontar um caminho para o estabelecimento da solidez política do Estado brasileiro depois de depurar a formação das diversas populações do Brasil calcadas principalmente na aristocracia rural.

Já Fernandes, em ​A integração do negro na sociedade de classes traz uma análise mais pessimista dos movimentos reivindicatórios do meio negro que apesar de terem se inserido em organizações sociais de resistência não obtinham força para quebrar a lógica da desigualdade racial. O resultado da nova interpretação que se anuncia após essas reivindicações é a afirmação pelo próprio negro de ser homem livre e cidadão, porém sem que esse reconhecimento alcance toda sociedade, como é observado até os dias atuais.

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