Daniel Camargos

Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.

Daniel Camargos

O Brasil e os esqueletos no armário da indústria automotiva

Da obra da BYD à fazenda da Volkswagen, passando pela cadeia da Toyota, a história nacional do setor é marcada por episódios ultrajantes de exploração

O Brasil e os esqueletos no armário da indústria automotiva
O Brasil e os esqueletos no armário da indústria automotiva
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante visita à linha de montagem de veículos da BYD. Polo Petroquímico, Camaçari - BA. Foto: Ricardo Stuckert / PR
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Na semana passada, o governo federal e a BYD inauguraram com pompa a primeira fábrica de carros elétricos da empresa chinesa no Brasil, localizada no polo automotivo de Camaçari, na Bahia. No palco, o presidente Lula (PT) e o vice Geraldo Alckmin (PSB) discursaram sobre reindustrialização verde, geração de empregos e soberania nacional.

Falaram em futuro limpo, energia limpa, mobilidade limpa… Nenhuma palavra foi dita, contudo, sobre o passado recente da obra: a mesma planta onde, no fim de 2024, a Agência Pública revelou que trabalhadores chineses viviam em condições análogas à escravidão

O caso é amplamente documentado. O Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou, em maio, uma ação civil pública na Justiça do Trabalho contra a BYD e suas empreiteiras.

Antes disso, a inspeção do Ministério do Trabalho e Emprego realizou diligências entre dezembro e maio e concluiu que a empresa teve responsabilidade direta pela entrada irregular de 471 operários chineses.  Entre as irregularidades listadas estão trabalho forçado, condições degradantes e jornadas exaustivas. Os passaportes eram retidos, havia exigência de caução e descontos de 60% a 70% dos salários.

Em um dos alojamentos, apenas um banheiro atendia 31 pessoas, obrigando-as a acordar às quatro da manhã. A jornada mínima era de dez horas diárias, com folgas irregulares. Um trabalhador acidentado relatou estar há 25 dias sem descanso.

Diante da recusa das empresas em assinar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), o MPT moveu a ação. O órgão pede que a BYD e as empreiteiras sejam condenadas a pagar 257 milhões de reais por danos morais coletivos. A ação exige ainda o cumprimento integral da legislação trabalhista e a proibição de submeter empregados a tráfico de pessoas e trabalho escravo, sob pena de multa.

Durante a cerimônia de inauguração, Lula afirmou que a chegada da BYD, “com a tecnologia mais importante da indústria automobilística mundial”, provava que “Deus escreve certo por linhas tortas”, em referência à saída da Ford de Camaçari. Segundo o presidente, o que veio “é melhor do que o que foi embora”.

Lula também fez um apelo à direção da montadora para vender veículos a preços acessíveis aos funcionários, dizendo que “a coisa mais importante para uma montadora é o trabalhador dirigir o carro que ele mesmo fabrica”.

Em junho, o MTE autuou a BYD por manter trabalhadores em condições análogas à escravidão. A empresa poderá apresentar defesa em duas instâncias administrativas. Se não reverter as autuações, será incluída na Lista Suja do Trabalho Escravo.

A Lista Suja é o cadastro oficial do governo federal que reúne empregadores flagrados mantendo pessoas nessas condições. O registro é coordenado pelo Ministério do Trabalho e funciona como instrumento de transparência pública sobre quem já foi responsabilizado por esse tipo de violação.

Resta saber se a elogiada BYD terá o mesmo tratamento dado à JBS. Na última atualização da lista, a inclusão da JBS Aves foi suspensa por decisão do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que avocou o processo — ou seja, assumiu pessoalmente a análise do caso. Apesar de prevista em lei, a avocação nunca havia sido usada por um ministro desde a criação da lista, em 2003.

Em abril de 2024, Lula declarou sentir “orgulho” da JBS, como destaquei em uma coluna anterior.

O caso da BYD não é exceção no setor automotivo. Publiquei recentemente uma reportagem sobre a Toyota mostrando que parte do ferro-gusa usado pela empresa nos Estados Unidos teve origem em uma siderúrgicas abastecidas por carvoarias com trabalho análogo à escravidão no Maranhão.

Onze pessoas foram resgatadas, e os auditores-fiscais do trabalho anexaram ao relatório uma foto de um trabalhador amarrado e espancado pelo encarregado da carvoaria. Contei essa história em uma investigação na Repórter Brasil e no vídeo abaixo:

O carvão produzido na propriedade foi vendido a uma siderúrgica que exporta ferro-gusa para os Estados Unidos. Registros alfandegários e portuários que acessei mostram quatro embarques — mais de oito mil toneladas — destinados à Toyota Motor North America entre fevereiro e setembro de 2022, todos realizados após o episódio de violência.

A Toyota brasileira afirmou que não tem relação com as compras da Toyota dos EUA. Procurada, a Toyota dos EUA não se manifestou. A siderúrgica diz ter descredenciado os fornecedores. Anos depois, em junho, o mesmo trabalhador foi resgatado da condição de escravizado em fiscalização em outra carvoaria.

A exploração ligada às montadoras não se restringe às linhas de montagem. A Volkswagen foi condenada, em agosto deste ano, a pagar 165 milhões de reais por trabalho escravo cometido entre 1974 e 1986 na Fazenda Vale do Rio Cristalino, no Pará.

Centenas de trabalhadores foram levados por aliciadores para abrir pasto e derrubar mata. Viviam em barracões precários, vigiados por seguranças armados e endividados nas cantinas da fazenda. Relatos da época falam em espancamentos e assassinatos. A Justiça reconheceu o crime e determinou que a empresa publique um pedido de desculpas. A Volkswagen nega as acusações e recorre.

A indústria automobilística brasileira nasceu no governo Juscelino Kubitschek, em 1956, e ainda é tratada como sinônimo de progresso. Responde por 4% do PIB, emprega mais de um milhão de pessoas e movimenta cadeias de aço, borracha, vidro e logística. Desde os anos 2000, recebeu mais de 80 bilhões de reais em incentivos fiscais. Hoje o país é o oitavo maior produtor mundial, com 3,2 milhões de veículos por ano.

Mas o tamanho da indústria não a torna imune ao que produz nas sombras. Sob o verniz da modernidade elétrica, persistem velhos métodos e relações de exploração. O Estado brasileiro continua a tratar as montadoras como motores do desenvolvimento. Mesmo quando o combustível é humano.

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