Daniel Camargos
Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.
Daniel Camargos
O fantasma do Dia do Fogo assombra todo o Brasil
A impunidade dos responsáveis pelas queimadas em 2019 alimenta os incêndios em todo o País


A fumaça que sufoca os brasileiros é a mesma que encobre o fantasma do Dia do Fogo de 2019. Cinco anos se passaram desde que o mundo assistiu ao ataque coordenado à Floresta Amazônica, um marco da política ambiental desastrosa do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), e ninguém foi responsabilizado.
As chamas deste ano, no entanto, provocam uma pergunta fundamental: teria a impunidade dos incendiários do Dia do Fogo alimentado a fogueira para a tragédia se repetir em escala ainda maior?
Em agosto de 2019, a Amazônia brasileira ardeu como nunca antes na última década. O estopim para a tragédia foi um pacto macabro: fazendeiros e empresários da região de Novo Progresso, no sudoeste do Pará, encorajados pelo discurso permissivo do ex-presidente, organizaram um final de semana dedicado ao fogo, uma demonstração de força daqueles que viam na floresta um obstáculo ao lucro.
Em 10 e 11 de agosto de 2019, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, que monitora focos de incêndio por satélite, registrou uma explosão de focos de incêndio na região de Novo Progresso, em comparação com o mesmo período do ano anterior. As chamas, alimentadas pela seca e pela ação humana, avançaram sobre a Floresta Nacional do Jamanxim e a Reserva Biológica Nascentes Serra do Cachimbo, importantes áreas de preservação ambiental.
A repercussão negativa do “Dia do Fogo” forçou as autoridades a agirem, pelo menos para aparentar que estavam tomando alguma providência. A Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a Polícia Civil do Pará abriram investigações. A PF, em outubro de 2019, deflagrou a Operação Pacto de Fogo, cumprindo mandados de busca e apreensão em propriedades de suspeitos de terem participado da organização das queimadas.
Fui enviado para Novo Progresso pela Repórter Brasil para fazer a cobertura jornalística do episódio. Era uma parceria com o jornal inglês The Guardian e estive em campo junto com Dom Phillips, o jornalista inglês que seria covardemente assassinado anos depois no Vale do Javari, na tríplice fronteira com Peru e Colômbia.
Em setembro de 2019, eu e Dom entrevistamos o principal investigado, o presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso, Agamenon Menezes. Para o ruralista, as denúncias não passavam de “farsa” e “invenção da imprensa”, atribuindo o aumento dos incêndios à seca e a ONGs internacionais que, segundo ele, conspiravam contra o Brasil.
Nossas reportagens revelaram como mensagens trocadas em grupos de WhatsApp expunham a trama por trás do “Dia do Fogo”. As conversas mostravam fazendeiros e empresários combinando a data, a hora e os locais para atear fogo, além de organizarem uma “vaquinha” para cobrir os custos do combustível e da contratação de motoqueiros, responsáveis por espalhar as chamas.
Voltei outras duas vezes a Novo Progresso nos últimos anos. Em uma dessas viagens mostrei que uma área incendiada no Dia do Fogo tinha se convertido em uma lavoura de soja.
Quando completou um ano do assassinato do Dom Phillips, fiz parte de um consórcio de jornalistas – o projeto Bruno e Dom – e revelamos documentos da PF que mostravam como Menezes e o sindicato que ele presidia registraram no Cadastro Ambiental Rural terras que foram queimadas durante o “Dia do Fogo”, incluindo áreas localizadas em unidades de conservação, onde a propriedade privada é ilegal.
Apesar da aparente mobilização inicial e das evidências que se acumulavam, as investigações não responsabilizaram ninguém. A falta de cooperação entre as polícias Civil e Federal e a influência política dos suspeitos, apontados como próximos a parlamentares da bancada ruralista, contribuíram para a paralisia do caso.
Cinco anos depois, a promessa de justiça se dissipou como fumaça. O MPF arquivou os inquéritos relacionados ao Dia do Fogo, alegando falta de provas suficientes para apresentar denúncias.
A PF, por sua vez, também arquivou seu inquérito, sem realizar novas diligências. Ninguém foi responsabilizado criminalmente pelos incêndios que devastaram a floresta e geraram comoção internacional. Cinco anos depois, o Brasil arde em uma nova onda de incêndios ainda mais devastadores. Dados do Inpe revelam mais de 160 mil focos de queimadas registrados até setembro, um aumento de 104% em relação ao mesmo período do ano anterior.
“Há uma forte suspeita de que o ‘Dia do Fogo’ está acontecendo de novo”, disse a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva. A ministra se refere aos incêndios florestais que atingem o estado de São Paulo, levantando a hipótese de que as chamas, mais uma vez, seriam resultado de uma ação coordenada.
O diretor de Amazônia e Meio Ambiente da PF, Humberto Freire, em entrevista ao Valor Econômico, prometeu resultados “em breve” nas investigações sobre os incêndios deste ano. A PF abriu 85 inquéritos para investigar a origem das queimadas, um número bem maior que os oito inquéritos abertos em 2022, durante o governo Bolsonaro.
Freire reconheceu que a legislação ambiental brasileira é branda e defende penas mais severas para quem comete crimes ambientais, especialmente incêndios criminosos. Ele menciona que a PF está elaborando uma proposta para endurecer a legislação, que deve ser enviada em breve ao Congresso.
Vamos aguardar sentados, de preferência em um ambiente com as janelas fechadas por causa da fumaça, e observar como se dará a negociação com o Congresso, que tem na bancada ruralista sua maior força de lobby.
Seria um clichê perfeito terminar esta coluna escrevendo sobre a importância de votar corretamente para prefeito. Mas quando lembro que escrevi há poucos dias uma reportagem mostrando que a disputa em Novo Progresso – o epicentro do Dia do Fogo – tem dois candidatos, um madeireiro contra um garimpeiro, confesso que nem o clichê nos salva.
Novo Progresso é a cidade mais bolsonarista da Amazônia. No segundo turno das eleições de 2022, 83% da população votou no ex-capitão do Exército. É claro que os dois disputam para se apresentar como a candidatura mais bolsonarista. Uma tem a campanha verde e amarela; a outra é amarela e verde. Deveriam mesmo adotar a cor cinza.
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