COP30

O Brasil planejou uma COP30; a Amazônia entregou outra

Pressões indígenas, críticas ao petróleo, greenwashing e até uma cobrança da ONU expuseram contradições da conferência. A segunda semana começa com impasses sobre financiamento, adaptação e demarcações

O Brasil planejou uma COP30; a Amazônia entregou outra
O Brasil planejou uma COP30; a Amazônia entregou outra
Indígenas Munduruku do Baixo Tapajós se reúnem com autoridades, entre elas o presidente da COP 30, André Corrêa do Lago, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva e a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajaras, no auditório do Tribunal de Justiça de Belém – Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
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Antes das seis da manhã, quando ainda era possível caminhar sem disputar sombra em Belém, a COP30 parou diante de um portão fechado pelo povo Munduruku. Delegados se acumularam com pastas e credenciais enquanto as lideranças pediam para serem ouvidas pelo presidente Lula. A cena expôs o tom da primeira semana: quem conduziu o ritmo não foi a programação oficial.

A COP30 é a conferência anual da ONU sobre mudança climática. Funciona como uma cidade temporária, dividida em áreas com diferentes níveis de acesso. A Zona Azul, onde delegações negociam acordos climáticos, é a região mais restrita. A Zona Verde concentra debates, estandes e atividades abertas ao público credenciado. O bloqueio dos Munduruku ocorreu na entrada que leva ao corredor principal da Zona Azul.

Não foi um episódio isolado. Na véspera, um grupo de Munduruku convidado pelo Ministério Público Federal foi barrado na entrada da Zona Verde por carregar arco e flecha como elemento cultural. Os seguranças fecharam o portão e exigiram que os objetos fossem deixados do lado de fora.

Também houve, antes da abertura da conferência, uma tentativa de entrada na Zona Azul com empurra-empurra enquanto lideranças indígenas queriam entregar documentos e cobrar demarcações de territórios. A ONU enviou uma reclamação formal ao governo brasileiro, responsável pela logística. Em seguida, a área passou a ser vigiada por um número maior de militares e policiais armados.

O governo havia anunciado a intenção de realizar uma COP “sem gravata”, expressão usada para apresentar uma conferência menos cerimonial e mais adaptada ao ambiente amazônico. A logística parecia alinhada a essa proposta: ampliou-se o credenciamento indígena e criou-se a Aldeia COP, alojamento na Universidade Federal do Pará para cerca de três mil indígenas. A estrutura, porém, não foi o bastante..

As cobranças dos Munduruku se concentraram no Plano Nacional de Hidrovias, que prevê concessões privadas nos rios Madeira, Tocantins e Tapajós. Para quem vive nessas regiões, hidrovias significam dragagens constantes, erosão de margens, prejuízo à pesca e impactos sobre áreas sagradas.

A crítica incluía também a Ferrogrão, ferrovia planejada para ligar o norte de Mato Grosso ao Médio Tapajós, no Pará, e projetos de crédito de carbono que, segundo lideranças, podem permitir a entrada de intermediários nos territórios e abrir brechas para novas formas de apropriação irregular de terras.

Alessandra Korap Munduruku afirmou que “falta vontade política do presidente Lula” para impedir que o Tapajós vire corredor industrial. Ela lembrou que a região convive com contaminação por mercúrio do garimpo ilegal, responsável por malformações e problemas neurológicos em crianças. A situação é amplamente documentada em estudos, reportagens e ações judiciais.

As vozes indígenas ecoaram durante toda a semana, especialmente porque o governo pretendia anunciar novas demarcações na abertura da COP, mas os processos não avançaram.

A contradição ficou evidente já na chegada dos visitantes. No aeroporto, campanhas publicitárias de mineradoras com passivo socioambiental recepcionavam as delegações. Um painel publicitário imenso da Vale convida o visitante a “ver e viver as Amazônias”. Já a Hydro instalou um painel luminoso com a imagem de Fafá de Belém diante de uma floresta tropical. Foram as primeiras imagens da COP para quem desembarcava na capital paraense.

O setor mineral reforçou a ofensiva. Em um painel, representantes disseram que, se “o agro é pop, a mineração é top”. Já o agronegócio ocupou sua própria vitrine. A CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária) banca a Agrizone, espaço de promoção de tecnologias classificadas pelo setor como sustentáveis. No fim desta segunda-feira (17), haverá um afrontoso churrascão oferecido aos participantes.

Nem pop e muito menos top, os trabalhadores terceirizados da limpeza comiam marmitas sentados no chão, em frente aos banheiros, por falta de refeitórios. A cena foi registrada pela jornalista Hélen Freitas, da Repórter Brasil. Entre milhares de jornalistas, ela foi a única a olhar para baixo e notar o absurdo. Após a repercussão, a organização destinou um espaço adequado para alimentação dos trabalhadores.

Enquanto a programação oficial mostrava suas contradições, os espaços paralelos se consolidavam. A Cúpula dos Povos e a Casa do Povo, organizadas por movimentos sociais, reuniram debates sobre racismo ambiental, soberania alimentar e violência contra defensores de direitos humanos.

Tribunais simbólicos apresentaram casos reais de violações socioambientais envolvendo mineração, hidrelétricas e conflitos fundiários. Para muitas comunidades, foi a única oportunidade de uma escuta pública ao longo da semana. Como ápice dos eventos paralelos, a Marcha do Clima, no sábado, levou cerca de 50 mil pessoas às ruas com demandas pela eliminação dos combustíveis fósseis.

Nos espaços formais, a discussão sobre financiamento climático dominou. Países em desenvolvimento defendem que nações ricas destinem 1,3 trilhão de dólares anuais para mitigação e adaptação. O valor enfrenta resistência. Estudos apresentados estimam em US$ 97 trilhões os danos acumulados por emissões históricas dos países desenvolvidos — cálculo conhecido como “dívida climática”.

A adaptação também provocou embates. Países vulneráveis pediram recursos previsíveis para enfrentar secas, enchentes e a elevação do nível do mar. Houve ainda discussões sobre estratégias para tentar manter a meta de limitar o aquecimento global a 1,5°C.

A segunda semana começa agora com a chegada de ministros e chefes de delegações. É o momento em que países tentam transformar discursos em compromissos. O Brasil entra pressionado. Movimentos indígenas cobram demarcação. Delegações estrangeiras pedem coerência entre discurso e prática. E organizações da sociedade civil insistem para que o governo enfrente contradições em hidrovias, petróleo e conflitos territoriais.

A primeira semana mostrou que o roteiro oficial não controla a realidade. Em Belém, a COP30 foi moldada pelos territórios, pelas denúncias e por quem vive os efeitos diretos das mudanças climáticas. O palco continua montado, mas o ritmo agora é imposto pelos fatos da Amazônia real, bem diferente da Amazônia anunciada por mineradoras.

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