Daniel Camargos

Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.

Daniel Camargos

Mundurukus travam estrada da soja e escancaram violência do agro na Amazônia

Caminhoneiros disparam contra os indígenas na Transamazônica, enquanto o governo silencia diante da violência na rota da soja

Mundurukus travam estrada da soja e escancaram violência do agro na Amazônia
Mundurukus travam estrada da soja e escancaram violência do agro na Amazônia
Foto: Movimento Munduruku Ipereğ Ayũ / Diulgação
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O povo Munduruku bloqueia, desde 25 de março, um dos principais pontos da logística do agronegócio brasileiro. Os indígenas impedem que caminhões carregados de soja, vindos do Mato Grosso, cheguem ao porto do rio Tapajós, em Itaituba, no sudoeste do Pará. Estão mobilizados na BR-230, a Transamazônica, próximos ao entroncamento com a BR-163, a rodovia da soja.

O protesto é contra a lei que institui o marco temporal e contra a mesa de conciliação aberta pelo Supremo Tribunal Federal, que já havia considerado a tese inconstitucional. Os indígenas pedem a revogação da lei, que chamam de “lei da morte” e “lei do genocídio indígena”. Também exigem o fim da mesa de negociação, onde afirmam não se sentirem representados.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil se retirou da mesa por considerar que ela promove uma “negociação forçada” de seus direitos e que o anteprojeto apresentado pelo ministro Gilmar Mendes continua a ameaçá-los.

O local do protesto não foi escolhido ao acaso. Trata-se da principal artéria por onde escoa a produção de soja do Centro-Oeste para os portos do Tapajós. Ao interromper essa rota, os Munduruku colocam o dedo na ferida: a prioridade que o Estado brasileiro dá ao agronegócio, em detrimento dos direitos constitucionais dos povos originários e da preservação da floresta.

Foto: Movimento Munduruku Ipereğ Ayũ / Diulgação

A manifestação começou de forma pacífica. Mulheres, crianças e idosos participaram. Ambulâncias, cargas vivas e emergências tiveram passagem liberada. Ainda assim, os indígenas foram atacados por caminhoneiros — primeiro com xingamentos, depois com pedras e, nos últimos dias, com tiros.

Na quinta-feira 27, três disparos atingiram acampamentos. No dia seguinte, segundo relato nas redes sociais da liderança Alessandra Korap Munduruku, caminhoneiros armados ameaçaram de morte os manifestantes. As ameaças são diretas: “Já avisaram que vão matar nós se não sairmos da pista”.

No sábado 29, um caminhão avançou sobre os indígenas e por pouco não cometeu um massacre.

Alessandra critica a ausência do governo federal. Segundo ela, nem a Funai, nem o Ministério dos Povos Indígenas fizeram contato nos primeiros dias da manifestação. “Eles não vieram. A gente está sozinho aqui”, afirmou. Para os Munduruku, o silêncio diante da violência escancara de que lado o governo está.

Uma decisão da Justiça Federal determinou a reintegração de posse dos trechos ocupados. O Ministério Público Federal recorreu, apontando omissão da Justiça por não garantir o diálogo interétnico previsto na Resolução 454 do Conselho Nacional de Justiça, por não convocar audiência pública, como exige a Resolução 510, e por desconsiderar a vulnerabilidade do grupo atingido.

O MPF também contestou a inversão do direito à manifestação em relação ao de circulação. Pediu a suspensão da reintegração e alertou para o risco real de violência.

Foi em um posto de combustível, a menos de 10 quilômetros do local do protesto, que vi porretes com inscrições como “Respeito”, “Direitos Humanos” e “Diálogo” à venda. O ódio não é apenas espontâneo. É cultivado, fomentado e reproduzido com ironia.

As imagens fizeram parte de uma série de reportagens que publiquei no ano passado: Ogronegócio: milícia e golpismo na Amazônia. Os bastões estavam à venda em um posto por onde passam, diariamente, caminhões carregados de soja. Horas após a publicação da reportagem, a polícia recolheu os porretes. O delegado classificou a venda como incitação ao crime.

A rodovia simboliza o projeto político em curso: garantir a circulação de commodities a qualquer custo. Se tiver indígena no caminho, será removido — com decisão judicial, porrete ou tiro.

“O racismo e o discurso de ódio dos caminhoneiros que transportam soja para os portos do agronegócio têm se intensificado a cada momento”, denuncia a carta publicada pelo Movimento Munduruku Ipereg Ayu. Segundo o documento, a bancada do agronegócio, na Câmara e no Senado, quer acabar com os direitos indígenas, com seus territórios e com suas vidas.

Uma das prioridades legislativas da Confederação Nacional da Agricultura para este ano é justamente o marco temporal. “A insegurança jurídica é agravada pela ausência de critérios claros para demarcação de terras indígenas e quilombolas, alimentando disputas e afetando a previsibilidade dos negócios no campo”, diz a CNA, que no Congresso tem seus interesses representados pela Frente Parlamentar Agropecuária, a bancada ruralista. .

A tese do marco temporal e a pressão contra os indígenas não são novas. Desde o século XVIII, os Munduruku resistem ao avanço dos pariwat — os brancos. Já enfrentaram grileiros, militares, projetos de hidrelétricas e agora tentam combater uma aliança entre soja, garimpo e política. A floresta virou zona de passagem de commodities. Quem vive nela, virou estorvo.

Estive nas aldeias do povo Munduruku do Alto Tapajós em 2023. Reportei a contaminação por mercúrio nas crianças Munduruku. Algumas não andam, não falam e não brincam. O garimpo ilegal, com apoio direto de políticos e empresários, envenena os rios e destrói a base da vida nas comunidades.

Os Munduruku estão cercados. Pelo avanço do agronegócio, pela expansão do garimpo ilegal e pela omissão do Estado. A tese do marco temporal alimenta esse cerco. Os ruralistas defendem abertamente a lei porque ela facilita a expansão sobre territórios ainda não homologados. A logística da soja não pode parar. Se depender deles, quem atrapalhar será removido — com lei, com porrete ou com tiro.

Os bloqueios não são apenas protestos. São gestos de denúncia. São uma maneira de exigir visibilidade em um país que só enxerga o que ameaça o lucro. Mesmo com a violência e a pressão, os Munduruku decidiram que vão permanecer protestando.

A tese do Marco Temporal é a versão jurídica do modus operandi do agronegócio: garantir acesso irrestrito à terra, independentemente de quem nela viva. A floresta é vista como obstáculo. Os indígenas, como inimigos do progresso. Os porretes com inscrições de ódio são apenas a materialização do que muitos gostariam de fazer sem intermediários. E os tiros na Transamazônica, disparados contra manifestantes desarmados, mostram que não se trata apenas de discurso.

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