Daniel Camargos

Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.

Daniel Camargos

Entre o Leblon e o Araguaia: a ditadura que não cabe no cinema

‘Ainda Estou Aqui’ emociona, mas deixa evidente a desigualdade na memória nacional – e é neste contexto que a história de Eunice Paiva se torna ainda mais significativa

Entre o Leblon e o Araguaia: a ditadura que não cabe no cinema
Entre o Leblon e o Araguaia: a ditadura que não cabe no cinema
Fernanda Torres e o elenco de 'Ainda Estou Aqui' - Foto: Sony / Pipoca Moderna / Divulgação
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Assistir Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, é um lembrete visceral da barbárie que foi a ditadura militar. É um filme indispensável e urgente, especialmente neste momento em que a sombra do autoritarismo se levanta novamente, com gente próxima  – até na família – defendendo torturadores e relativizando o horror.

O ódio e o nojo que a ditadura desperta são as únicas reações possíveis diante da perversidade do Estado que sequestra, tortura, mata e depois tenta apagar os rastros dos seus crimes. Confesso, no entanto, que a beleza da produção e a reconstituição primorosa da vida burguesa da família Paiva no Leblon me causaram um certo desconforto.

É fácil se identificar com a dor daquela família, com a angústia de Eunice, com a luta pela memória do marido dela. Esse é um dos muitos méritos do filme, que bateu a marca de 1 milhão de espectadores. Mas, ao mesmo tempo, penso nas inúmeras vítimas da ditadura que não tiveram suas histórias contadas nem seus nomes gravados na memória coletiva.

Tanto sucesso e apuro estético me deixaram angustiado diante das histórias ocultas de camponeses e indígenas massacrados longe dos holofotes da grande mídia e das cadeiras almofadadas dos cinemas. A diferença entre o tratamento dado à memória dos militantes urbanos e a dos camponeses e indígenas segue gritante.

Enquanto os primeiros, em sua maioria, tiveram seus casos investigados, seus nomes reconhecidos e seus algozes expostos; os segundos permanecem, em grande parte, como estatísticas frias. São fantasmas que assombram a história do Brasil.

A Comissão Nacional da Verdade em seu relatório final, reconheceu a dificuldade em quantificar as mortes de camponeses e indígenas, dedicando um anexo temático à violência no campo. Foram 434 mortos e desaparecidos políticos identificados. Esse número não reflete a totalidade das vítimas, especialmente no campo. A luta pela verdade deve continuar, reconheceu a própria comissão em seu relatório final.

Outro trabalho revelou que pelo menos 16.578 camponeses foram vítimas de algum tipo de repressão política no período, incluindo assassinatos, prisões, agressões físicas e tentativas de homicídio, sendo 1.654 mortos e desaparecidos. A pesquisa foi coordenada pelo ex-preso político, Gilney Viana, pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (UnB), que detalhou o trabalho em entrevista à Agência Pública.

Intitulada A resistência camponesa à ditadura militar, a pesquisa de Viana mostra que a maioria dos crimes estava ligada à luta pela terra, com o latifúndio e o agronegócio negando a legitimidade das reivindicações dos trabalhadores rurais.

No caso da Guerrilha do Araguaia, por exemplo, a CNV, em seu relatório, reconhece 62 desaparecidos políticos nesse conflito. A comissão destaca uma metodologia sistemática de ocultação de cadáveres durante a Guerrilha do Araguaia, conhecida como “Operação Limpeza”, que dificultou a identificação e localização dos restos mortais das vítimas.

Além dos guerrilheiros, camponeses da região também foram vítimas da repressão: presos, torturados e assassinados sob a acusação de apoiar a guerrilha. Viana argumenta em sua pesquisa que o número de camponeses mortos e desaparecidos no Araguaia pode chegar a centenas.

O massacre dos povos indígenas foi ainda mais cruel. A CNV estimou que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos durante a ditadura. A comissão aponta massacres, esbulho de terras, remoções forçadas, contágio por doenças, prisões, torturas e maus tratos como causas de morte.

O número real de indígenas mortos pode ser ainda maior, já que apenas uma parcela dos povos afetados foi analisada. A pesquisa considerou apenas dez etnias: Cinta-Larga (RO), Waimiri-Atroari (AM), Tapayuna (MT), Yanomami (AM/RR), Xetá (PR), Panará (MT), Parakanã (PA), Xavante de Marãiwatsédé (MT), Araweté (PA) e Arara (PA).

Entre as atrocidades cometidas estão o envenenamento por alimentos misturados com arsênico e aviões que atiravam brinquedos contaminados com vírus da gripe, sarampo e varíola contra os Cinta-Larga, em Rondônia, por exemplo.

A violência contra camponeses e indígenas era vista como uma questão de segurança interna, a ser resolvida pelos próprios fazendeiros, com o braço armado de policiais militares, jagunços e milícias.

A luta pela terra, pela reforma agrária, era um dos principais focos de tensão no campo. As Ligas Camponesas, um dos principais movimentos sociais do período pré-ditadura, foram duramente reprimidas. Camponeses que resistiram à grilagem de terras, que denunciavam abusos trabalhistas, que se organizavam em sindicatos, se tornaram alvos da repressão.

A violência contra os indígenas, por sua vez, se inseria em um contexto marcado pelo racismo, pelo etnocídio e pela exploração econômica. A construção de grandes projetos de infraestrutura, como a Transamazônica, resultou na invasão de terras indígenas, na expulsão de comunidades, na disseminação de doenças e em massacres brutais.

Mas é preciso ir além da denúncia da violência. É preciso entender como essa violência se perpetua na memória e como a falta de conhecimento sobre as vítimas contribui para a continuação da impunidade.

É nesse contexto que a história de Eunice Paiva assume uma dimensão ainda mais significativa. Muito mais que a viúva do deputado Rubens Paiva, barbaramente torturado e assassinado, ela não se deixou abater pela dor, pela perda, pela injustiça. Eunice, como ressalta Ailton Krenak, em entrevista à Rádio CBN, “entendia que a vida brasileira implicava luta”.

Ela se engajou na luta pelos direitos humanos, pela memória, pela justiça, não apenas para sua família, mas para todas as vítimas da ditadura. E foi além. Ao se tornar especialista em direito indígena, Eunice dedicou anos de sua vida à defesa dos povos indígenas.

Krenak a descreve como uma “verdadeira jurista”, que “agia como o Ministério Público antes de existir Ministério Público”. Sua atuação foi fundamental para a inscrição dos direitos indígenas na Constituição de 1988.

Eunice Paiva atuou na Comissão Pró-Índio de São Paulo, fundada em 1978, denunciando as atrocidades cometidas contra os povos originários durante a ditadura. “É impossível contar a história do movimento indígena nos anos 70 e 80 sem fazer referência à contribuição dela”, disse Krenak.

Assim como tantas outras mulheres, muitas delas anônimas, Eunice foi uma heroína da resistência à ditadura. Sua história nos lembra que a luta pela memória e pela justiça não se limita aos grandes nomes, aos casos emblemáticos. É uma luta que precisa abarcar todas as vítimas, todas as vozes silenciadas, todas as histórias que precisam ser contadas.

Para que a barbárie da ditadura jamais se repita e nunca mais aconteça.

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