Daniel Camargos
Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.
Daniel Camargos
El Salvador, o espelho que a direita escolheu
Tentando ocupar o vácuo eleitoral de Bolsonaro, Zema e outros endossam um modelo marcado por encarceramento em massa, repressão e supressão de garantias


O governador Romeu Zema (Novo) embarca nesta semana para El Salvador. Quer conhecer de perto o modelo de segurança pública implantado pelo presidente Nayib Bukele. A missão, bancada com dinheiro público, simboliza uma escolha política da nova direita brasileira: a adoção de soluções baseadas no encarceramento em massa e na suspensão de direitos.
Em pré-campanha para emplacar como candidato à presidência, Zema disse que pretende conhecer pessoalmente “talvez o programa de combate ao crime mais bem-sucedido da história da humanidade”. O governador mineiro não está sozinho. Pablo Marçal, influenciador e ex-candidato à prefeitura de São Paulo, já visitou o país. Eduardo Paes, prefeito do Rio, também chegou a cogitar a viagem. Todos surfam uma onda que exalta El Salvador como o país mais seguro da América – ignorando os métodos e os custos desse status.
El Salvador vive sob um regime de exceção desde 2022. Foram mais de 85 mil pessoas presas sem mandado judicial. A maior prisão da América Latina, o CECOT, abriga 40 mil detentos sem visitas, sem banho de sol, com celas lotadas e iluminação constante. Segundo a organização Human Rights Watch, ao menos 300 morreram sob custódia. As mortes são provocadas por desnutrição, agressões físicas e negligência médica.
Com pouco mais de 6,6 milhões de habitantes e território menor que Sergipe, El Salvador é hoje o país com maior taxa de encarceramento do mundo.
A repressão funcionou para desarticular gangues históricas, mas às custas de liberdades básicas. Prisões por “aparência suspeita”, julgamentos coletivos com 900 réus e desaparecimentos compõem o cotidiano de um sistema penal transformado em vitrine. A ONG salvadorenha Socorro afirma defender 1.500 detidos que não fazem parte das maras (gangues locais), mas que foram presos apenas por terem tatuagens.
Bukele, porém, desfruta de popularidade. A pacificação aparente das ruas fala mais alto que os alertas da ONU, da Anistia Internacional e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
De origem palestina e publicitário de formação, Bukele foi eleito presidente em 2019. Em 2024, reelegeu-se, mesmo com a Constituição salvadorenha proibindo a reeleição. Para viabilizar sua continuidade no poder, controlou o Legislativo, promoveu a destituição de magistrados da Suprema Corte e substituiu o procurador-geral.
Sua comunicação aposta na mistura de informalidade, nacionalismo e tecnologia. Autodenomina-se “o ditador mais cool do mundo”, um rótulo que reforça seu apelo junto a setores que veem no autoritarismo uma resposta à ineficiência do Estado.
Em seus discursos, Bukele atribui a criminalidade ao abandono do Estado e à conivência com o crime. Ao imitá-lo, Zema tem adotado não apenas o conteúdo, mas também a forma. Vídeos publicados pelo governador mineiro repetem o teor conspiratório do salvadorenho, sugerindo que há criminosos “dentro do governo” e que o Brasil falha no combate ao crime por interesses ocultos.
A escolha por El Salvador como modelo externo revela coerência com as práticas adotadas por Zema em Minas Gerais. Seu governo proibiu a entrada de cigarros nos presídios, medida apontada como “abstinência forçada” pela Defensoria Pública e acusada de ter motivado automutilações e rebeliões, como mostrei em reportagem publicada em novembro. Sem oferecer tratamento para dependentes, o veto foi interpretado especialistas e familiares das vítimas como mero aceno à base de extrema-direita.
Entidades já denunciaram a piora nas condições dos presídios mineiros. Entre janeiro e novembro de 2023, 92% das denúncias recebidas pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos estavam relacionadas ao sistema prisional.
Nesse contexto, mirar-se no modelo de Bukele não parece coincidência, mas sim uma estratégia que quer ocupar o vácuo do inelegível ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Um levantamento do jornal O Tempo identificou, em apenas dois meses, 30 publicações nas redes sociais em tom de confronto direto com o governo Lula, o Supremo Tribunal Federal e o Partido dos Trabalhadores. O discurso de oposição é baseado em temas como segurança, moralidade e eficiência. Valores que Bukele, com seu estilo autoritário e estética moderna, representa com apelo popular crescente.
Mas El Salvador oferece outros espelhos. Um deles é o de Dom Óscar Romero, arcebispo assassinado em 1980 por denunciar violações do regime militar salvadorenho. Ele enfrentou a repressão com coragem. Foi perseguido, considerado “perigoso” pelo Vaticano e morto com um tiro no coração enquanto celebrava missa. Sua canonização só ocorreu em 2018, décadas após sua morte.
Romero defendia que o papel da autoridade não é punir os pobres, mas garantir justiça e dignidade. Denunciava a violência do Estado e alertava que segurança sem direitos era apenas medo disfarçado.
Se os políticos brasileiros que desembarcarem em San Salvador decidirem visitar também a Catedral Metropolitana, onde repousam os restos do agora santo, talvez encontrem outro tipo de inspiração. Porque a escolha de qual El Salvador mirar — o das mega prisões ou o da justiça pregada por Dom Romero — diz muito sobre o projeto de país que se pretende construir.
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