Daniel Camargos

Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.

Daniel Camargos

Crises em série testam os limites do ‘fenômeno’ Nikolas na era pós-Bolsonaro

Condenação por transfobia, visita a Bolsonaro sob cobrança do STF e desistência de concorrer ao governo de Minas Gerais concentraram, em poucas semanas, o maior cerco jurídico e político já enfrentado pelo deputado

Crises em série testam os limites do ‘fenômeno’ Nikolas na era pós-Bolsonaro
Crises em série testam os limites do ‘fenômeno’ Nikolas na era pós-Bolsonaro
Nikolas Ferreira e Jair Bolsonaro. Foto: Douglas Magno/AFP
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Eleições 2026

O último mês virou o roteiro traçado por Nikolas Ferreira (PL-MG) de cabeça para baixo. O deputado federal mais votado do País foi condenado por transfobia, apareceu em imagens que levaram o Supremo Tribunal Federal (STF) a cobrá-lo sobre o uso de um celular ao lado de Jair Bolsonaro, e anunciou que desistiu de disputar o governo de Minas Gerais. Acostumado a empurrar adversários para a defensiva, foi ele quem passou a ter de se explicar.

Nikolas foi questionado por repórteres sobre a eleição do ano que vem, na última sexta-feira 28, em Contagem (MG). Disse que já tinha tomado sua decisão e que não entraria na disputa pelo governo mineiro. “Pensei como o meu inimigo”, afirmou. E completou: “Se eu fosse candidato ao governo, eu perderia meu foro e poderia no outro dia estar com o Ministério Público e o Tribunal de Contas da União (TCU) nas minhas costas, de forma injusta”.

Nos últimos anos, Nikolas respondeu a ações eleitorais por desinformação e processos por vídeos ofensivos. Um dos casos mais recentes envolve a eleição municipal de 2024 em Belo Horizonte. O Ministério Público acusa Nikolas, o deputado estadual Bruno Engler e duas aliadas de comandar uma “campanha sistemática de desinformação” contra Fuad Noman, que acabaria eleito na última eleição.

O grupo teria manipulado trechos de um livro de Fuad para insinuar que o adversário, falecido em março, incentivaria conteúdo impróprio para crianças. A procuradoria pede a suspensão de direitos políticos e indenização a instituições de caridade.

A desistência da candidatura ao governo de Minas veio uma semana após outro abalo. Em 21 de novembro, às 10h30, Nikolas visitou Jair Bolsonaro em Brasília. Um drone da TV Globo sobrevoou a área externa da casa onde o ex-presidente cumpria prisão domiciliar e registrou os dois lado a lado. Nikolas segurava um celular enquanto conversavam. Era o mesmo dia em que Flávio Bolsonaro convocara uma vigília em frente ao condomínio do pai.

Horas depois, o sistema de monitoramento apontou tentativa de violar a tornozeleira eletrônica, que seria explicada pelo próprio Bolsonaro como uma tentativa de rompê-la com solda. A PGR se manifestou pela prisão e o ministro Alexandre de Moraes decretou a preventiva. O ex-presidente foi levado para a sede da Polícia Federal e segue preso.

Parlamentares acionaram o STF, e Moraes pediu esclarecimentos a respeito do uso do celular. A defesa de Bolsonaro disse que ele não teve “contato visual” com o aparelho. Nikolas respondeu, pelas redes sociais, que o celular era de uso pessoal e que não houve irregularidade. Disse também não ter sido comunicado da proibição. 

Faltou explicar por que portava um telefone na mão ao lado de alguém proibido de usar dispositivos eletrônicos, inclusive por meio de terceiros.

Dois dias antes, em 19 de novembro, a 42ª Vara Cível de São Paulo condenou Nikolas a pagar R$ 40 mil a uma mulher por danos morais. O caso teve origem em um vídeo dela relatando transfobia em um salão de beleza. 

Nikolas compartilhou o conteúdo, referiu-se a ela como “homem” e usou para atacar o que chama de “ideologia de gênero”. A sentença afirma que negar a identidade de gênero de uma pessoa viola seus direitos e que o dano se amplifica quando parte de um agente público com grande alcance.

Não foi um caso isolado. Ainda no ensino médio, Nikolas se indignou com uma prova de sociologia que trazia a imagem da cartunista Laerte e discutia transgeneridade e diversidade sexual. Acusou a professora de “apologia ao ativismo gay” e denunciou uma suposta “doutrinação marxista”. A postagem viralizou e chamou a atenção do clã Bolsonaro, inserindo Nikolas no ecossistema digital da extrema-direita e fomentando sua entrada na vida política.

Em 2020, recusou-se a usar pronomes femininos ao se referir a Duda Salabert, então vereadora eleita pelo PSOL, durante uma entrevista. Duda venceu quatro ações contra ele, incluindo uma indenização de 30 mil reais por transfobia determinada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Em 2022, uma irmã de Nikolas, então com 16 anos, filmou uma adolescente trans de 14 anos no banheiro feminino da escola em Belo Horizonte. Nikolas publicou o vídeo, criticou a política de inclusão da escola e convocou boicote. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais o tornou réu por transfobia, violação ao Estatuto da Criança e do Adolescente e exposição indevida de imagem. 

Um laudo apontou abalo emocional à adolescente. Apesar disso, o caso foi explorado na campanha daquele ano, quando Nikolas se elegeu deputado federal com 1,49 milhão de votos, usando o episódio do banheiro como bandeira. 

Em Brasília, o embate com Duda continuou. Em 2023, no Dia Internacional da Mulher, ele subiu à tribuna com uma peruca loira e disse com sarcasmo que “descobriu que mulher não nasce, mulher se sente”. A peruca hoje decora seu gabinete em Brasília, ao lado de uma foto de Bolsonaro sem camisa, um retrato de Olavo de Carvalho e livros como Meu Nome é Enéas e Cristianismo Puro e Simples.

Após a prisão de Bolsonaro, Duda publicou um vídeo irônico que reuniu imagens de Nikolas ao lado de antigos aliados hoje alvos da Justiça: Carla Zambelli, Gabriel Monteiro, Daniel Silveira, Pablo Marçal, Alexandre Ramagem e o primo Glaycon Raniere.

Zambelli está presa na Itália; Monteiro foi cassado e preso no Rio; Silveira foi condenado por ataques ao STF; Marçal está inelegível; Ramagem está foragido após tentativa de golpe e o primo preso com 30 quilos de maconha. 

Os perfis são distintos, mas juntos ajudam a retratar o ambiente em que Nikolas se move: bolsonarismo, olavismo, política religiosa e uma engrenagem digital que transforma conflito e violência em capital político. O pai, Edésio de Oliveira, é pastor e fundador da Igreja Graça & Paz, em Belo Horizonte. Assisti a um culto na igreja e contei em outra coluna como foi. 

No gabinete em Brasília, ele mantém assessores com histórico no bolsonarismo digital, como Augusto Coelho, ex-assessor de Flávio Bolsonaro e ex-coordenador do ensino médio no MEC, e Lígia Tomaz, irmã de Tércio Arnaud Tomaz, apontado como integrante do “gabinete do ódio”.

A imagem que Nikolas projeta como menino que cresceu na favela da Cabana do Pai Tomás perseguido pelo sistema não resiste aos relatos de moradores. O local é uma comunidade pobre da zona Oeste de Belo Horizonte, marcada por carências históricas em saneamento, moradia e serviços públicos.

Nikolas, no entanto, cresceu em prédios nos arredores da favela, estudou em escolas particulares, morou na França durante o período em que o pai trabalhava em uma multinacional e se formou em Direito. A marca política não veio da vivência na periferia, mas da capacidade de transformar conflitos escolares e religiosos em conteúdo viral. 

Aos 29 anos, Nikolas aspirava ao governo de Minas como um degrau rumo à Presidência da República, cargo que só poderá disputar quando completar 35 anos – idade mínima exigida pela Constituição. A sucessão de Romeu Zema (Novo) seria o estágio intermediário ideal. 

Mas, com a decisão de recuar, ele não ficará desamparado. Nikolas é casado com Lívia Bergamim Orletti. Meses antes da cerimônia – realizada em 15 de abril de 2023, em uma fazenda em Pedra Azul (ES), com 350 convidados, entre eles Michelle Bolsonaro – o sogro, Gilmar Orletti, comprou a Fazenda Vargem Alegre, em Mucurici (ES), por 35,6 milhões de reais e constituiu a LLV Agrícola, com capital social de 12,1 milhões de reais.

Lívia é sócia da LLV, ao lado da mãe e do irmão. A empresa tem propriedades no norte capixaba voltadas à produção de café. Outros familiares controlam o Grupo Orletti, rede de concessionárias com faturamento acima de 1 bilhão de reais.

O casal vive em um condomínio no bairro Garças, em Belo Horizonte. A casa tem dois andares, quatro quartos e quintal. Imóveis semelhantes são vendidos por 2,2 milhões de reais e alugados por 12 mil reais mensais. Na última eleição, Nikolas declarou 36 mil reais em patrimônio.

O capital do deputado vai além do financeiro e também se vê nas redes. Nikolas quase sempre lidera os rankings de políticos mais influentes no Instagram. Ele produz vídeos quase diários, com edição dramática e repete um roteiro: o do conservador perseguido.

Nas últimas semanas, porém, o tom mudou. Ao invés de atacar, Nikolas passou a se defender. Explicou a visita a Bolsonaro, reagiu a nova condenação por transfobia e anunciou com antecedência que não disputará o governo mineiro para preservar o foro.

O deputado que fez carreira provocando conflitos para os outros gerencia agora os que criou para si. Mesmo acuado, segue amparado por uma fortuna familiar e por uma audiência fiel que garante sua permanência na extrema-direita da cena política.

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