Daniel Camargos
Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.
Daniel Camargos
Condenação à vista e a infame medalha de Jair Bolsonaro
Antes, o presente servia para consolidar vínculos. Agora, opera como fetiche por um poder em declínio


Tenho uma obsessão peculiar: mapear quem recebeu a medalha 3i, insígnia de metal pouco maior que uma moeda, com a inscrição “imorrível, imbrochável e incomível” e a imagem de Jair Bolsonaro apontando o dedo, sob a legenda “Clube Bolsonaro”. No verso, há a foto de uma motociata.
Desde 2021, o ex-capitão distribui essas medalhas em eventos oficiais e improvisados. Vira e mexe, saca uma do bolso e entrega, criando uma espécie de ordem honorífica paralela. Não há decreto, nem regulamento.
Vi a cena de perto recentemente, em Belo Horizonte, quando Bolsonaro condecorou o vice-governador mineiro Mateus Simões. O constrangimento era parte do espetáculo. O auditório riu e aplaudiu. A imprensa registrou. A graça não está na piada, mas em obrigar o outro a embarcar nela.
Simões aceitou com sorriso amarelo. Sabe que precisa do aval de Bolsonaro para disputar o governo mineiro, enfrentando rivais de direita mais populares, como o senador Cleitinho Azevedo (Republicanos) e o deputado Nikolas Ferreira (PL).
No início, Bolsonaro dizia que havia apenas 150 unidades, querendo valorizar sua medalha com a manjada tática do marketing de escassez. Mas a lista que levantei já soma 68 nomes. Se parar por aí, pode ser uma homenagem involuntária a 1968, ano do AI-5, o ato mais brutal da ditadura que ele tanto venera.
Algumas entregas tiveram repercussão internacional. O jogador de futebol Neymar, o presidente argentino Javier Milei e o premiê húngaro Viktor Orbán receberam a insígnia.
Há, inclusive, um vídeo antológico da entrega a Orbán. Eduardo Bolsonaro explica em inglês o significado dos adjetivos. “Imorrível” é nunca morrer. “Imbrochável” é nunca falhar na cama. Orbán sorri amarelo. O que pretendia ser um gesto diplomático termina em vergonha alheia para quem assiste. E justamente por isso funciona: no universo bolsonarista, o excesso e o ridículo parecem ser uma demonstração de confiança.
Entre os agraciados está ainda o deputado Éder Mauro (PL-PA). O vídeo da condecoração mostra dois homens engravatados, performando para um celular e se dizendo imbrocháveis: Bolsonaro no papel de tiozão inconveniente e o paraense quase saltitando com ares de “quero ser como você”.
Viajei a Belém há três anos para acompanhar Éder Mauro num 7 de setembro. Testemunhei não só sua retórica violenta, já que ele se orgulha de ter matado em serviço quando era policial, como também uma estética bolsonarista muito bem construída: bandeiras, músicas, motos e gestos ensaiados. A versão à direita de uma “mística” que movimentos sociais cultivam há décadas. O impressionante é como o bolsonarismo construiu a sua em tempo recorde.
Assistir ao ato despertou um questionamento: o que sustenta pertencimentos políticos duradouros? Foi inevitável pensar no anel de tucum, que carrego no dedo (na ocasião, estava guardado no bolso).
O anel é usado por setores da esquerda desde os anos 1980. O bispo Dom Pedro Casaldáliga o difundia como sinal de compromisso com os pobres, os povos indígenas e a luta pela justiça social. O tucum, feito da palmeira amazônica, era uma escolha proposital: simples e barato.
Quem o usava assumia não só uma causa, mas também as consequências de carregá-la, como perseguição política, incompreensão e até ameaças de morte. Era uma promessa silenciosa de fidelidade a um projeto coletivo.
A medalha 3i ocupa o polo oposto. Não é símbolo de entrega, mas de adesão. É performance ruidosa de obediência, feita para a câmera, para o aplauso, para o corte vertical das redes. Enquanto o tucum exige coerência de vida inteira, a medalha exige quinze segundos de encenação: sorrir, agradecer, repetir o bordão.
Bolsonaro já disse ter presenteado Vladimir Putin e Donald Trump, mas não há provas. No Brasil, a lista é longa. Valdemar Costa Neto ostenta a sua. Gilberto Kassab recebeu em junho. Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo, ganhou logo depois de Pablo Marçal se gabar de ser “um dos poucos”. Jorginho Mello, governador de Santa Catarina, e Daniel Vilela, vice-governador de Goiás, também.
Além de Neymar, o ex-jogador Emerson Sheik posou com a medalha. O jornalista Alexandre Garcia foi condecorado no aniversário. O colunista de celebridades Léo Dias recebeu a sua após uma entrevista. Escrevi sobre o caso de Roberto Katsuda, empresário do setor de máquinas para garimpo na Amazônia, também agraciado.
Até o fim desta semana, o destino político de Jair Bolsonaro deve ser decidido pelos cinco ministros da Primeira Turma do STF. Juristas, jornalistas e praticamente todos os “istas”, com exceção dos bolsonaristas, dão como certa a condenação por tentativa de golpe de Estado.
Com a sentença se aproximando, a medalha 3i ganha outro peso. Antes, servia para consolidar vínculos de poder. Agora, opera como resistência simbólica, fetiche de um poder em declínio.
Bolsonaro pode até ser condenado, mas não sairá de cena. Suas ideias seguem em circulação, conectando governadores, vereadores, empresários, celebridades e anônimos – muitos deles agraciados com a infame medalha. São símbolos como este que manterão a trincheira em marcha, com ou sem o ex-capitão.
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