Daniel Camargos

Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.

Daniel Camargos

A coragem de Glauber ante aos inimigos do povo 

O deputado do PSOL mostra que o confronto explícito pode transformar uma cassação anunciada em recuo 

A coragem de Glauber ante aos inimigos do povo 
A coragem de Glauber ante aos inimigos do povo 
Glauber Braga (PSOL-RJ) e aliados comemoram resultado que livrou o deputado da cassação. Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Apoie Siga-nos no

O deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ) foi ovacionado ao subir no trio-elétrico na orla de Copacabana no domingo 14. No caminho, foi cercado por militantes que pediam fotos e, ao publicar os retratos nas redes sociais, exaltavam sua coragem. Comemoravam a vitória contra um pedido de cassação que, até poucos dias antes, parecia definido, mas se converteu em uma suspensão do mandato por seis meses. 

“O papel de mandato da esquerda é prioritariamente fazer com que a luta que vira o jogo seja a luta da rua tocada cotidianamente pelo povo”, afirmou, concluindo o discurso. Deixou claro que o afastamento não significará recuo político. Ao contrário, reforçará sua atuação fora do Congresso. 

No trio-elétrico, Glauber discursou com uma bandeira preta estendida à sua frente, onde se lia “Congresso inimigo do povo”. A coragem de Glauber em enfrentar seus pares, muitos deles a justificar plenamente a pecha ecoada pelas ruas, foi imensa. E é raro encontrar na política institucional alguém disposto a sustentar esse tipo de enfrentamento. 

Glauber está na Câmara desde 2009, quando assumiu como suplente pelo PSB, e cumpre hoje seu quinto mandato consecutivo como deputado federal. Antes mesmo de começar a falar, ouviu a multidão gritar: “Glauber fica! Glauber fica! Glauber fica!”. 

O político e a plateia se somaram aos milhares que tomaram as ruas das capitais brasileiras no domingo para pressionar o Congresso contra uma sequência de decisões antipopulares. A mais recente foi a aprovação do projeto da dosimetria, que quer reduzir penas de condenados pelos atos golpistas do 8 de Janeiro. 

O processo que levou à suspensão de Glauber teve origem formal em abril de 2024, quando chutou um militante do MBL nas dependências da Câmara. O episódio foi enquadrado como quebra de decoro parlamentar. O contexto, no entanto, foi deixado à margem do debate. 

Naquele momento, Saudade Braga, mãe de Glauber, vivia a fase mais avançada do Alzheimer. Médica, militante histórica da esquerda e prefeita de Nova Friburgo (RJ) por dois mandatos, ela foi a principal referência do deputado. 

O militante de direita a ofendeu publicamente, chamando-a de corrupta. Glauber reagiu como filho. Afirmou que repetiria o gesto se a situação se repetisse. A mãe morreria pouco depois da provocação. 

O episódio, contudo, apenas acelerou um embate que já estava em curso. Ao longo dos últimos anos, Glauber passou a confrontar temas que a direção da Câmara tratava como

consensos operacionais, sobretudo o controle do Orçamento e o sistema de emendas parlamentares. 

Emendas são recursos do orçamento federal que deputados e senadores destinam a obras e projetos. Tornam-se um problema quando grandes volumes ficam concentrados nas mãos de poucos dirigentes, sem transparência e sem critérios claros. Esse arranjo passou a ser conhecido como orçamento secreto. 

Glauber denunciou esse sistema de forma insistente. Subiu à tribuna mais de vinte vezes para tratar do tema. Apontou o então presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), como o principal operador desse modelo, sustentando que ele concentrava poder, controlava a liberação dos recursos e usava esse mecanismo como instrumento de comando político dentro do Parlamento. 

Mesmo após decisões do Supremo Tribunal Federal que restringiram o orçamento secreto, Glauber sustentou que a lógica permanecia intacta. Em depoimentos à Polícia Federal e ao STF, afirmou que parte desse poder havia sido reorganizada por meio das emendas de comissão, agora sob influência direta da Presidência da Câmara. Arthur Lira sempre negou irregularidades ou qualquer tipo de retaliação. 

Essas declarações passaram a integrar investigações conduzidas pela Polícia Federal e decisões judiciais que apuram o funcionamento das emendas de relator e de comissão, inclusive com operações de buscas e apreensões envolvendo assessores ligados à antiga cúpula da Câmara. O embate deixou de ser apenas retórico e passou a atingir diretamente a disputa pelo controle do Orçamento e os mecanismos internos de poder da Casa. 

É nesse contexto que o processo disciplinar ganhou peso político. Ainda sob a presidência de Arthur Lira, a representação apresentada pelo Partido Novo (não poderia ser outro que não a agremiação da cor laranja, que por vezes se porta como um bolsonarista tosco, mas capaz de comer com garfo e faca) foi acolhida de forma imediata e encaminhada ao Conselho de Ética. 

O colegiado aprovou a cassação do mandato de Glauber. A escolha pela pena máxima contrastou com a condução de casos mais graves envolvendo parlamentares alinhados à extrema direita, escancarando tratamentos distintos para situações semelhantes, como tratei em uma coluna publicada em abril. 

Coube ao sucessor de Lira, Hugo Motta (Republicanos-PB), conduzir o desfecho. Na semana passada, Motta pautou em sequência três temas: a cassação de Glauber Braga, a manutenção do mandato da deputada Carla Zambelli (PL-SP) e a votação de um projeto que reduzia penas de condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro. 

Glauber ocupou a cadeira da Presidência de maneira deliberada. Tentou interromper o rito e expor o encadeamento das decisões. Em resposta, Hugo Motta acionou a Polícia Legislativa para retirar o deputado à força. Houve empurra-empurra, corte da transmissão da TV Câmara e expulsão de jornalistas do plenário. O presidente da Câmara negou excessos e afirmou que a polícia apenas cumpriu o regimento.

As críticas se intensificaram pelo contraste com episódios recentes. Em agosto, deputados bolsonaristas ocuparam a Mesa Diretora por quase dois dias para pressionar a votação de pautas de interesse da direita. Naquela ocasião, Motta optou pela negociação. Não houve 

repressão, nem punição. Lembrei daquela máxima já dita antes no Congresso: “tigrão com uns, tchutchuca com outros”. 

Logo depois da retirada violenta de Glauber, a Câmara aprovou o projeto da dosimetria.A sequência dos fatos consolidou a percepção de seletividade: rigor disciplinar contra um deputado da oposição de esquerda; flexibilização penal para crimes contra a democracia. 

Foi nesse ambiente que a expressão “Congresso inimigo do povo” voltou a circular com força.. Ao longo de 2025, o Legislativo acumulou decisões contrárias ao interesse do povo brasileiro, como o desmonte da legislação ambiental entre várias outras que acolhem o andar de cima. 

A não cassação de Glauber, contudo, não se deve a uma mudança de convicção no plenário. Foi cálculo político. Para confirmar a cassação, seriam necessários 257 votos. O Centrão estava dividido. Parte dos deputados concluiu que insistir na pena máxima poderia levar à absolvição, o que esvaziaria a autoridade do Conselho de Ética e da Mesa Diretora. 

A suspensão por seis meses apareceu como saída intermediária. Garantiu punição, evitou uma derrota institucional e preservou os direitos políticos do deputado, que seriam automaticamente perdidos em caso de cassação. 

A articulação envolveu a liderança do PSOL, o PT e setores do centro político. Contou também com a entrada direta do Palácio do Planalto. O presidente Lula (PT) acompanhou a votação, acionou a articulação política do governo e monitorou o cenário. 

Arthur Lira, por sua vez, demonstrou irritação com o desfecho e criticou, em conversas internas reveladas pela imprensa, a condução da Câmara, sinalizando que a ofensiva punitiva não entregou o resultado esperado. 

Temporariamente afastado do mandato, Glauber intensifica articulações no Rio de Janeiro. Não como encenação, mas como convicção política. Também ensina à esquerda que, quando o conflito deixa de ser protocolar, envolve denúncias corajosas e recusa ao silêncio, o sistema reage. E, em determinadas condições, recua. Não por convicção, mas por cálculo.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo