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Conselho de Conteúdo do Facebook expõe limites da autorregulação

Iniciativa tem o desafio de garantir que os conteúdos compartilhados na plataforma respeitem os princípios universais dos direitos humanos

Foto: Agência Brasil
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A Cidade do México foi palco, na última semana, de um workshop organizado pelo Facebook para apresentar a acadêmicos, especialistas em direitos digitais e organizações da sociedade civil da América Latina a proposta da empresa de criar um Conselho Assessor de Conteúdos. Anunciado por Marck Zuckeberg em novembro de 2018, o Conselho funcionaria, nas palavras do fundador da rede, como uma Suprema Corte, capaz de julgar casos em que conteúdos publicados pelos usuários da rede social violariam os chamados “padrões da comunidade Facebook” e por isso deveriam ser retirados de circulação.

A comparação com uma corte ressabiou juristas e defensores da liberdade de expressão na rede. A ausência de um devido processo legal, englobando fases de investigação, ampla defesa, julgamento e a possibilidade de recorrer da decisão da empresa em excluir conteúdos que trafegam na rede já é uma preocupação antiga, considerando a importância que o Facebook ganhou como espaço de circulação de ideias e opiniões no mundo.

Por outro lado, o descompasso entre a velocidade das redes sociais e o ritmo lento do Judiciário, somado à distância entre o sistema de Justiça e as/os cidadãs/ãos comuns usuários do Facebook, acaba criando um cenário onde, diante de casos de violações de direitos e discurso de ódio, na maioria das vezes resta ao indivíduo apenas recorrer aos instrumentos e fluxos da própria plataforma para tentar se defender. Importante lembrar que, em países como o Brasil, onde o elitismo, o racismo institucional, a sensação de impunidade e a falta de preparo dos agentes e instituições para julgar temas relacionados aos direitos digitais torna o quadro ainda mais preocupante.

Pesquisadoras/es criaram um termo para isso: corporocracia, ou seja, a transferência do governo do Estado, e de funções que caberiam ao poder público, para grandes empresas privadas. Pensemos no Airbnb, no Uber e nos impactos destes sobre as políticas de ordenamento urbano e de direito à cidade e em como as novas gigantes da Internet têm atuado globalmente pressionando mudanças de hábitos socioculturais em consonância com seus modelos de negócio.

Autorregulação

Mas quais os riscos e limites dessa transferência de poderes e da eventual troca da regulação estatal pela autorregulação? Para tomarmos um contexto mais específico, peguemos o caso dos crimes de racismo e injúria racial. Segundo levantamento da SaferNet, em 2017, o racismo ocupou o primeiro lugar do ranking de denúncias online da organização, sendo o Facebook a plataforma com o maior número de registros. Naquele ano, a Safernet registrou 1.751 casos de racismo na rede social, quase 58,3% do total realizado. Em paralelo, de 2011 a 2018, na Bahia, estado de maior população negra do país em números proporcionais, tramitaram apenas 222 processos sobre racismo no Tribunal de Justiça do Estado (TJ-BA). Destes, apenas sete foram julgados.

Ou seja, o descompasso entre o volume de violações e os instrumentos formais de denúncia e responsabilização é gritante. Daí que a primeira porta a qual as vítimas de violações têm recorrido em casos de crimes cometidos na rede de Zuckberg é a da própria empresa. Em número bem menor, e notadamente em casos que ganham repercussão (como quando envolvem figuras públicas), a via da Justiça é priorizada. Mas, na falta de outros caminhos, tem restado às vítimas denunciar a postagem e aguardar que a plataforma julgue se determinado conteúdo viola ou não seus termos de uso. E só aí o conteúdo será ou não removido. Naturaliza-se, assim, a figura do ente privado como única e principal via garantidora de direitos.

E aí chegamos aos limites da autorregulação. Caberia ao Facebook, segundo seus próprios critérios, decidir de maneira autocrática sobre o fluxo de conteúdos na plataforma? Ou, qual o lugar de fala/escolha/autonomia destinado ao usuário desta comunidade? E, mais, qual o papel do Estado, enquanto ente gestor da vida pública, neste imbróglio?

Na avaliação do Observatorio Latinoamericano de Regulación, Medios y Convergencia (Observacom), a criação do Conselho Assessor de Conteúdos do Facebook não deve substituir a existência de mecanismos de regulação das grandes plataformas desenvolvidos no âmbito da esfera pública, a partir de princípios democráticos e inteligentes. Para o think tank, tais mecanismos são fundamentais e urgentes quando se pensa o enorme poder de “editor global” que esta e outras plataformas adquiriram. A comparação com um grande ombudsman do planeta ou, noutra analogia recorrente, um Big Brother capaz de definir quais palavras (ou tags) são permitidas, quais têm maior alcance e quais são indesejadas e derrubadas, é bem verossímil. Neste sentido, ao criar um Conselho externo com pretensa independência da empresa, o Facebook sinaliza com uma proposta interessante para um problema que já se tornou grande demais. Mas, como destacaram diversas organizações no workshop do México, esta está longe de ser uma solução mágica.

 Contextos locais e os padrões da comunidade

Em primeiro lugar, como avaliar contextos locais de produção de sentidos, de conflitos, disputas ou mesmo de piadas (que, notadamente não tem validade fora de contexto cultural) a partir de uma política pretensamente global? Como não reproduzir uma lógica cultural marcada pelas dinâmicas coloniais de domínio norte-sul, na análise de conteúdos produzidos por usuários da América Latina, por exemplo? A diversidade dos indivíduos que poderão compor o novo Conselho dará conta dos contextos e sensibilidades culturais locais?

Em segundo, a pretensa independência do Conselho, pensado segundo critérios de governança que o protegeriam da ingerência do Facebook, não impede seu atrelamento aos tais padrões da comunidade. E o que fará o Conselho quando esses padrões entrarem em confronto com manifestações legítimas de pensamento e liberdade de expressão? O que será priorizado? E quando os padrões forem mais restritos que as leis em vigor num determinado país? Quem decide?

Sobre esta questão, a empresa não garante a prerrogativa do Conselho de Conteúdos em, por exemplo, propor mudanças nos padrões do Facebook e também no funcionamento técnico (e político!) dos algoritmos e dos fluxos humanos de gestão de conteúdo, que hoje contam com cerca de 30 mil funcionários revisando conteúdos em 50 diferentes idiomas.

Por fim, se pensarmos em escala, o resultado da ação do Conselho também será bastante limitado. O volume e a velocidade das publicações que saltam na linha do tempo dos mais de 2 bilhões de usuários da plataforma diariamente é gigante. Mesmo que seja levado em conta o critério de prevalência (ou, o privilégio de análise sobre aqueles conteúdos com potencial maior de atingir pessoas e gerar engajamento), o Conselho de Conteúdos terá ingerência apenas sobre casos emblemáticos, e não sobre toda a gestão de conteúdos no interior do Facebook.

Regulação inteligente

Por isso mesmo, a necessidade de uma regulação inteligente e democrática, construída em diálogo com a iniciativa privada e que incida sobre as grandes plataformas tem se mostrado cada vez mais necessária. Antecipando-se a estes questionamentos, o próprio Facebook vem sinalizando abertura neste sentido, como ficou evidente na recente conversa da empresa com o presidente da França. Afinal, iniciativas de corregulação no campo das comunicações, incluindo a esfera digital, tem alcançado resultados importantes em diversas democracias.

Conforme antecipou manifestação conjunta do Intervozes, da Associação para os Direitos Civis da Argentina e do Observacom, qualquer regulação neste campo deve-se guiar pelos princípios e normas do sistema universal de direitos humanos, que partem de um acúmulo histórico sobre várias das questões acima dispostas.

A Corte do Facebook não deve estar acima desses princípios, duramente conquistados no que tange aos direitos de todos nós, usuários e usuárias da rede, membros da “comunidade” Facebook mas, antes de tudo, sujeitos de direitos fundamentais. Tampouco deve estar acima dos tribunais locais, suplantando o devido processo legal. Esta adequação, longe de ser um favor, exige do Facebook e das demais plataformas privadas um confronto com seus próprios modelo de negócios. E é aí que passa o caminho por onde devemos acompanhar os próximos passos deste debate.

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