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Sem democracia, austeridade é o novo ‘pacto social’ brasileiro

A emenda 95, que cria um teto para os gastos públicos, marca uma mudança de orientação no papel do Estado, que deixa de promover o bem-estar social

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Ao longo da década de 1980, o Brasil presenciou uma efervescência política com grandes mobilizações populares, greves, conflitos e extensos debates públicos que culminaram em um amplo acordo político, a Constituição Federal de 1988 (CF88). A chamada Constituição Cidadã sela um pacto social no Brasil que oferece uma ampla garantia dos direitos individuais e coletivos e o mais completo conjunto de direitos sociais que o país conheceu, além de uma ampla cobertura da seguridade social, que se tornou um dos maiores programas de proteção social de todo o mundo.

Um exemplo dessa proteção social garantida pela Constituição é o caso do financiamento da educação. Desde a CF de 1934 até hoje, o principal mecanismo de financiamento da educação é a vinculação de um percentual mínimo de recursos tributários. Atualmente, esse percentual é um mínimo de 18% da receita de impostos por parte da União e de 25% para Estados, Municípios e DF. Esse mecanismo de financiamento só foi interrompido em períodos ditatoriais: o primeiro marcado pela CF de 1937, e o segundo na CF de 1967, originária do golpe militar de 1964, que suprimiu a vinculação constitucional de recursos para a educação, diminuindo os investimentos governamentais nessa área.

Com a redemocratização, a sociedade escolhe reverter o descaso com o gasto em educação e define a área como prioridade. E não só a educação é reconhecida pela primeira vez como direito, tal como se lê no artigo 6º da CF88, mas também a “saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados” [1].

A CF88 também representa um compromisso importante na área de saúde: o Brasil passa a ser o único país com mais de 100 milhões de habitantes que incorporou em sua Magna Carta o compromisso de ter um Sistema Universal de Saúde (SUS). Em grande parte, isso é fruto da 8ª Conferência Nacional de Saúde, a “Oitava”, que reuniu em Brasília, em 1986, mais de quatro mil delegados de todas as regiões e classes sociais e ficou conhecida como a “pré-Constituinte da Saúde”: uma das grandes contribuições da Oitava foi o consenso obtido em torno da criação do Sistema Único Descentralizado de Saúde (Suds) em 1987, que se transformaria no SUS na CF88.

A CF88 define ainda, em seu artigo 196º, que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Tal modelo contrasta com o vigente durante a ditadura militar, baseado no Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), que prestava assistência de saúde aos que contribuíam com a previdência social e com grande embricamento do setor privado no público.

O SUS faz uma defesa do direito universal à saúde e não somente dos que contribuem com a previdência ou que podem pagar. Assim como com a educação, a importância dada à saúde pública e ao SUS na CF88 mostra uma priorização da área acordada pela sociedade brasileira à época da redemocratização e que, obviamente, demanda priorização de recursos.

Contudo, esse pacto social que estabelece direitos sociais ao cidadão e deveres ao Estado está sendo refeito. O marco dessa mudança de orientação no papel do Estado é a Emenda Constitucional 95, decorrente da PEC 241 ou PEC 55.

A EC 95 estabelece um novo regime fiscal, instituindo uma regra para as despesas primárias do Governo Federal com duração para 20 anos e possibilidade de revisão – restrita ao índice de correção – em 10 anos. Nessa regra, o gasto primário do governo federal fica limitado por um teto definido pelo montante gasto do ano anterior reajustados pela inflação acumulada, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Assim, o novo regime fiscal implica um congelamento real das despesas do Governo Federal, que pressupõe uma redução do gasto público relativamente ao PIB e ao número de habitantes (devido ao crescimento da população ao longo dos anos).

Ou seja, de acordo com a regra proposta, os gastos públicos não vão acompanhar o crescimento da renda e da população. Em síntese o Brasil está submetido ao “pacto” da austeridade, ou seja, a uma política de longo prazo fundada na redução dos gastos públicos e do papel do Estado em suas funções de indutor do crescimento econômico e promotor do bem-estar social.

O Gráfico mostra o gasto primário do Governo Central em porcentagem do PIB desde 1997 e uma projeção para o mesmo a partir de 2017 até 2037. Em 20 anos, no período de 1997 a 2017, o gasto primário do governo central cresceu de 14% para 19% do PIB[2]. Esse crescimento reflete a regulamentação dos direitos sociais conforme foi pactuado na CF88. Já nos próximos 20 anos, de 2017 a 2037, considerando uma taxa média de crescimento do PIB de 2 pontos percentuais ao ano, espera-se que o gasto primário do governo federal retorne para a casa de 14% do PIB. Ou seja, a EC 95 propõe retroceder nos próximos 20 anos o que o país avançou nos últimos 20 anos em termos de consolidação dos direitos sociais no Brasil.

Essa drástica redução da participação do Estado na economia é representativa de outro projeto de país, outro pacto social, que reduz substancialmente os recursos públicos para garantia dos direitos sociais, como saúde, educação, previdência e assistência social. Nesse novo pacto social, transfere-se responsabilidade para o mercado no fornecimento de bens sociais. Trata-se de um processo que transforma direitos sociais em mercadorias.

*Ana Luíza Matos de Oliveira é economista (UFMG), mestra e doutoranda em Desenvolvimento Econômico (Unicamp), integrante do GT sobre Reforma Trabalhista IE/Cesit/Unicamp; Flavio Arantes é doutorando em economia pela Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (CECON) do IE/Unicamp; e Pedro Rossi é professor do Instituto de Economia da Unicamp, diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp e coordenador do Conselho Editorial do Brasil Debate.

 



[1] Redação atual do Artigo 6º da CF 1988.

[2] As variações na proporção gastos/PIB refletem também a variação do denominador, ou seja, do PIB. Isso explica, por exemplo, o aumento dessa proporção em 2015, quando ocorre uma redução do gasto real primário da União. No entanto, a variação do denominador não invalida a análise da tendência de crescimento do gasto. 

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