Brasil Debate

Reforma trabalhista: outro caminho é urgente

A defesa do projeto é ardilosa ao destacar as poucas vantagens e esconder os inúmeros retrocessos

Há consenso de que é preciso adequar as relações trabalhistas ao mercado, mas não destruindo as pontes do diálogo entre capital e trabalho
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O projeto de reforma trabalhista avança no Congresso Nacional com a aprovação, na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), do relatório do senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), que acatou, na íntegra, o projeto elaborado pela Câmara dos Deputados, apenas com recomendações para que o presidente da República vete ou altere alguns pontos por medida provisória.

O projeto é a maior e mais ampla reforma da legislação trabalhista e do sistema de relações de trabalho realizada no País. Ao todo são alterados mais de 110 artigos da legislação e outros 200 dispositivos. Estima-se que 90% desses mecanismos são nefastos, reduzirão direitos, fragilizarão a proteção laboral, diminuirão o poder dos sindicatos. Trata-se de uma poderosa iniciativa de proteção às empresas, pois legalizará muitas formas de precarização do trabalho. Diminuirão, com isso, os passivos trabalhistas, o poder das entidades sindicais e da Justiça do Trabalho.

O projeto e os que o defendem são ardilosos. Argumentam e propalam as vantagens de 10% dos aspectos que podem ser considerados positivos e, com esse cobertor curto, procuram esconder as maldades contidas nos 90% “restantes”.

Os condutores desse processo foram astutos na estratégia legislativa, diante da oportunidade única de aprovação de uma de formação dessa envergadura, que não seria autorizada se passasse por debate público.

O governo enviou um projeto com meia dúzia de mudanças, a Câmara dos Deputados o colocou em debate e, enquanto isso, o deputado relator, Rogério Marinho (PSDB-RN), reelaborou o texto, com apoio do setor empresarial e de membros do Judiciário, e apresentou uma proposta que promove a devastação dos direitos trabalhistas. Em menos de três semanas, foi apresentado e votado um novo projeto, sem nenhum debate.

Agora, no Senado, a pressão governamental e empresarial busca, de todas as formas, aprovar o projeto da maneira que veio da Câmara. Mesmo que muitos senadores considerem que há problemas, em alguns ou muitos aspectos, ou mesmo em todo o projeto, a depender de quem o analisa, a CAE, do Senado, validou o texto com todos os problemas identificados.

O relator apontou apenas seis itens, que, na avaliação dele, envolvem questões polêmicas e merecem, por isso, mais debates e estudos. Ainda que sejam vetadas na Presidência da República, as questões podem ser analisadas novamente, por meio de projetos de lei ou de medidas provisórias editadas pelo Executivo.

Há consenso de que é preciso adequar o atual sistema de relações trabalhistas às profundas transformações do mundo do trabalho, mas o projeto proposto nem tangencia um campo de entendimento entre capital e trabalho. Muito pelo contrário, a pressa parlamentar para aprovar o projeto evidencia a oportunidade única de impor um golpe do capital, que produzirá uma deformação ainda maior no sistema de relações de trabalho.

É preciso ter claro que o sistema de relações de trabalho e de direito laboral normatiza e regula a relação entre trabalhador e empregador, trata conflitos, define direitos trabalhistas, tem impacto decisivo sobre a produtividade, além de determinar a partilha dos resultados da produção. Assim, pode alavancar processos civilizatórios que redefinirão o papel do Estado e da economia e trarão impactos à sociedade como um todo. Trata-se de uma construção social e histórica que, ao organizar as relações de trabalho, é responsável, em grande medida, pela coesão da sociedade.

Transformar um sistema de relações de trabalho exige um compromisso coletivo sobre os objetivos e resultados esperados com a mudança, bem como com o processo de transição para o novo. A avaliação dos múltiplos impactos sociais e trabalhistas é fundamental, assim como monitorar os resultados e corrigir desvios.

Um sistema de relações de trabalho organizado a partir da negociação coletiva requer sujeitos coletivos que efetivamente representem os interesses das partes. No centro da concepção desse sistema estão a criação e a manutenção desses sujeitos e instituições, que atuarão sobre um conflito permanente pela repartição da renda e da riqueza geradas pela produção e pelo trabalho, e darão soluções, sempre parciais e provisórias, que terão impactos sobre todo o regime democrático.

No estado democrático e de direito, o sujeito coletivo que representa os trabalhadores são os sindicatos, que precisam ter os instrumentos adequados para conduzir a negociação em condições de equilíbrio de forças com o poder econômico. Estrutura, organização, financiamento, acesso à informação, incentivo ao diálogo, mecanismos de solução voluntária e ágil de conflitos, instrumentos de pactuação do acordado, bem como garantia do cumprimento do acordo, são algumas das condições que favorecem o sistema de relações de trabalho baseado na negociação.

A abrangência dos acordos, ou seja, quais trabalhadores serão beneficiados pela negociação, é uma escolha fundamental, pois terá repercussão sobre a gestão das empresas, as formas de contratação e definição salarial, assim como sobre a organização e o financiamento sindical. Um sistema baseado na negociação coletiva deve garantir processos negociais do local de trabalho até o nível nacional (empresa, categoria, setor).

A relação complementar e harmônica entre a legislação trabalhista e o negociado e o papel da Justiça do Trabalho para mediação, arbitragem e solução de conflito também são partes essenciais do novo sistema.

No caso brasileiro, o sistema deve ainda considerar as profundas desigualdades de condições entre trabalhadores e empresas, o que tem impactos sobre as condições de trabalho e a capacidade real para gerar proteção laboral. A informalidade é a situação limite que expressa essa desigualdade e precisa ser enfrentada e superada.

O combate às práticas de precarização das condições de trabalho, de jornadas excessivas, de atitudes antissindicais, entre outros aspectos, deve fazer parte do desenho de um sistema de relações de trabalho que valorize a negociação.

O sistema deve também gerar compromissos com o desenvolvimento econômico das empresas e a repartição de resultados. Desenvolvimento é sinônimo de incremento/repartição da produtividade, que é fruto da complexa combinação entre o investimento na qualificação do trabalhador, a qualidade das condições dos postos de trabalho, a tecnologia empregada no processo de produção, entre outros fatores internos e externos à empresa ou organização. Para que seja efetivo, é preciso que haja instrumentos que atuem na perspectiva da pactuação de longos processos de mudança produtiva e de distribuição equitativa dos resultados.

Essas são algumas questões a serem consideradas no desenho das mudanças do sistema de relações de trabalho. Tudo isso evidencia a complexidade e repercussão econômica, política, social e cultural que as alterações podem e devem provocar. Por isso mesmo, o desenho normativo do novo sistema precisa ser resultado de cuidadoso processo de reflexão e de amplo diálogo social.

Vale insistir: uma reforma deve buscar construir uma nova cultura política nas relações laborais e, por isso mesmo, ser construída no espaço indelegável do diálogo social e de ampla negociação que inclua todos os agentes econômicos e políticos. Essa construção deve garantir compromissos com o novo modelo, capazes de conduzir a transição e gerar confiança para enfrentar as incertezas geradas pela mudança. O atual projeto destrói todas as pontes do diálogo e dos compromissos. 

*Clemente Ganz Lúcio é diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese)

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