Brasil Debate

Bolsonaro e o discurso que legitima o feminicídio

Uma análise das declarações do presidenciável sobre desigualdades de gênero e a violência contra a mulher

Feminicídio não é um crime como qualquer outro
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A polarização e as disputas por ideias são marcas da história política, social e econômica do Brasil, e está no centro dos debates sobre os rumos e caminhos que decidiremos em outubro próximo. Essa polarização explodiu nas manifestações de junho de 2013 e desde ali estamos numa guerra declarada sobre o que queremos como projeto nacional.

Foi ali que os grupos que representam os maiores retrocessos para um projeto de desenvolvimento do País com inclusão e justiça social encontraram ressonância e lideranças que mostraram que o Brasil não só é um país cheio de conflitos, mas que os direitos e as leis são dinâmicas e estão em constante mudança, a depender da correlação de forças que se apresentam.

De forma simplificada, foi nessas tensões e conflitos de interesses que presenciamos o golpe em que vivemos desde 2016, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

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A máscara de que o Brasil sempre foi um país pacífico e sem conflitos aparentes não se mantém em pé. O que encontramos hoje são intensas disputas que perpassam as formas com que os discursos se dão, e são essas maneiras de expressar as intenções políticas que me chamou atenção na fala do segundo colocado nas pesquisas de intenção de voto.

Pessoalmente, tenho evitado acompanhar a mídia, mas, diante do desespero que sinto toda vez que vejo o resultado das pesquisas eleitorais, decidi assistir a entrevista realizada pela Globonews com o segundo colocado das pesquisas. Com ouvidos e visão de socióloga, buscava entender o que tem motivado este sujeito ganhar destaque e partidários de suas ideias.

De tudo o que foi dito, nada me surpreendeu. Porém, o que chamou minha atenção foram as bases com que este sujeito realizou suas afirmações, e aí, possivelmente, uma das motivações por estar onde está.

Para além de grande parte das respostas às perguntas sobre economia serem no sentido do “não sou especialista neste assunto, então deixarei para meu futuro ministro resolver”, não vimos isso ao ser questionado sobre questões do âmbito sociocultural, como no caso das indagações sobre desigualdades de gênero no mercado de trabalho, sobre a Lei do Feminicídio e sobre suas declarações homofóbicas, racistas e misóginas já propagadas publicamente.

Ao afirmar que as desigualdades salariais com base no gênero são anteriores a ele e que quem decide isso é o patrão, o dono ou dona da empresa, juntamente com um “sempre foi assim”, podemos traduzir que defende em seu discurso que o Estado e quem quer que venha a ser o representante do Executivo não deve interferir no campo da reprodução das desigualdades, que estas assim são e que somente o setor privado é quem deve decidir sobre salários e as regras do mercado.

Dessa forma expressa que o livre mercado deve imperar e que a remuneração dependerá somente da produtividade do trabalhador e que isso independe do gênero. Ora, o que vemos com esse tipo de fala? Que papel cabe ao Estado para reduzir as desigualdades? Para este sujeito, nenhum, já que também representa as ideias de Estado mínimo.

Diante da questão feita por uma jornalista, se considera a mulher uma subcategoria, vimos risos e uma clássica resposta machista de que suas declarações são brincadeiras. O sujeito, que até então se esquivava, sorriu e escarneceu. Aumentou o tom de voz e passou a responder aos homens presentes, mesmo a pergunta tendo sido realizada por uma mulher. 

Às tentativas de reformulação da questão realizadas por ela, só vimos interrupção e a evocação da presença masculina como destinatários das respostas. Ao ser chamado atenção pela mediadora da entrevista, que apresentou o dado de que aproximadamente 5 mil mulheres são assassinadas por ano, localizando o Brasil em sétimo colocado dentre 83 países pesquisados pela Organização Mundial de Saúde, o candidato responde que esses crimes são como outros tantos, como se as motivações desses assassinatos não importassem.

A Lei do Feminicídio de 2015 veio justamente para qualificar e tipificar que há motivação no assassinato de mulheres: o fato de serem mulheres. Ou seja, a lei traz à tona a necessidade de o Estado reconhecer que mulheres são assassinadas por exercerem seus direitos de uma vida sem violência, e que muitas vezes é ceifada pelos homens da família, agentes de violência doméstica e familiar, e por serem menosprezadas e discriminadas pela condição de ser mulher.

Assim, o assassinato de em média 13 mulheres por dia no Brasil está intrinsecamente relacionado à subjugação da mulher, e também à reprodução sociocultural de que devemos seguir caladas, aceitando uma dita normalidade do “sempre foi assim”, que se traduz como uma normativa do patriarcado racista e heteronormativo.

Abordar os crimes por motivação de gênero, orientação sexual e racismo como crimes “normais” e que devem ser encarados como qualquer outro assassinato é tentar invisibilizar as dimensões mais nefastas que levam a esses crimes. É assim que o fascismo também opera, dando tom de indignação e normalidade ao destilar o ódio, os preconceitos e as discriminações.

O candidato segue afirmando que suas agressões às parlamentares e entrevistadoras são reações normais, que fazem parte do ser humano, que o sangue ferve e que não se contém. Aproximar novamente ao campo do “normal”, do comportamento humano essencialmente instintivo é justificar, num pretenso senso comum, que esses crimes podem existir.

Não.

Nenhum crime motivado pelo ódio pode ser justificado como dentro da normalidade da vida em sociedade. E é por isso que temos o dever de nos mantermos nas barricadas, confrontando, denunciando e lutando para que o que estrutura as desigualdades sociais seja diariamente combatido.

O que estamos enfrentando – e o que está por vir – não pode ser encarado como se fizesse parte de uma história que se repete sem grandes novidades. É isso que um lado das forças em disputa tenta nos convencer, que nossas lutas não construirão novos e melhores caminhos.

Não.

Não podemos permitir que um sujeito que representa a extrema direita e os discursos de ódio afirme que no Brasil, país em que mais se assassina a população LGBTT, é preferido pelos LGBTT!

Não.

Temos que dar um basta nas afirmações de que a solução para a segurança pública é a intervenção militar, que só aumentará o quadro dramático de encarceramento e extermínio da juventude negra!

O Brasil não pode ser representado por uma ideologia que defenda que temos que superar nossas diferenças e sermos um só, que defenda as privatizações das riquezas nacionais, mas  deve ser representado por aquela ou aquele que esteja disposta a encarar nossas tensões, nossas diversidades não como problema, mas sim como um caminho para sermos mais justos, menos miseráveis, menos desiguais, menos assassinos, mais inclusivos social e economicamente, um país que encare as pautas sociais mais urgentes com responsabilidade e prioridade para a dignidade humana.

Que possamos ser muitas e muitos e ainda assim vivermos no mesmo país. Que a luta e a resistência dos movimentos sociais – dxs feministas, dxs antirracistas, dxs anti homofobia, dxs trabalhadorxs, dxs movimentos por moradia, dos movimentos pelo direito à terra, dos movimentos por educação e por saúde pública – cresça, ganhe mais e mais espaço nas ruas e nas instituições e que nos inspirem a seguir lutando por um país que possamos seguir vivos e que tenhamos a liberdade de sermos felizes!

Não. Não passarão.

* Luciana Ramirez da Cruz é mestra em sociologia e doutoranda em ciências sociais pela Unicamp, bolsista do CNPq. Integrante do Grupo de Pesquisa “Contradições do Trabalho no Brasil Atual. Formalização, precariedade, terceirização e regulação”

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