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Economia ortodoxa: notícias de lugar nenhum, parte I

Debate opõe os que defendem o livre-mercado e os que reivindicam seu controle. A polaridade não esgota, porém, as alternativas analíticas e práticas

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Este artigo tem por objetivo a crítica às posições metodológicas e filosóficas na Ciência Econômica, cujas insuficiências ficam patentes no debate patrocinado pelo caderno Ilustríssima da Folha de S.Paulo ao longo do ano de 2016. A polêmica foi suscitada por um artigo de Marcos Lisboa, intrépido defensor da ortodoxia, estrela ascendente do conservadorismo nacional. Os heterodoxos reagiram incontinentes, mas, mesmo admitindo a relevância de alguns elementos presentes em suas réplicas, a posição crítica à ortodoxia sustentada nesse artigo atinge igualmente o quadro teórico da heterodoxia.

Antes de apresentarmos essa crítica, vale ressaltar a dificuldade experimentada no exercício desse tipo crítica, recentemente no debate na Folha. Após tripla intervenção de Lisboa e co-autores, e quíntupla intervenção de autores heterodoxos, a editoria do caderno Ilustríssima houve por bem recusar o artigo dos autores sob a alegação de que o tema estaria esgotado. Quando o nosso artigo apresentava argumentos para demonstrar que a disputa metodológico-filosófica nem ao menos incorporava o senso comum na filosofia da ciência atual, a saber, que sempre se fala de algum lugar, e esse lugar é ontológico, o editor do Ilustríssima cometeu a imprudência de alegar que nada haveria a acrescentar ao debate. O que deixa patente a existência hoje em dia de uma blindagem institucional da ortodoxia contra qualquer crítica substantiva. E como, nesse artigo, defendemos a posição de que crítica substantiva é crítica ontológica, parece claro que a recusa do artigo foi uma censura, que, nesses tempos, vem sempre velada.

O debate metodológico-filosófico na economia: limites da crítica

Desde o início do ano de 2016, o caderno Ilustríssima tem oferecido espaço para uma acirrada disputa filosófico-metodológica opondo economistas neoclássicos e pós-keynesianos ou, para usar o qualificativo dos próprios participantes, ortodoxos e heterodoxos. A controvérsia, na verdade, envolve a busca de amparo filosófico para as análises sobre a natureza da crise da economia brasileira, suas causas, e, em vista dos diagnósticos antagônicos, para as correspondentes prescrições de política econômica.

As considerações que apresentamos nesse artigo focalizam especificamente a dimensão filosófica do debate. Não sem antes registrar que o controle sobre a dinâmica imanente do capital tem sido fator importante para a democratização e humanização da sociedade capitalista moderna. Por essa razão, entre a defesa do livre mercado desimpedido e a reivindicação de seu controle, antecipamos o nosso voto pela última: dos males, o menor. Opção que o argumento filosófico pretende justificar, além de indicar que, ao contrário do que a disputa subentende, a polaridade ortodoxia versus heterodoxia na Economia não esgota, de forma alguma, as alternativas analíticas e práticas.

Iniciamos por Marcos Lisboa e seus coautores [Gonçalves (2016) e Pessôa (2016a)  e  (2016b)], por dois motivos: primeiro, porque eles são os defensores da ortodoxia (neoclassicismo) que motivaram as respostas dos heterodoxos (pós-keynesianos) Belluzzo e Bastos (2016a) e 2016b,  De Paula e Jabbour (2016) , Palácio e Capovilla (2016)  e Gala e Oreiro (2016); segundo, porque Lisboa reincide em argumentos que já foram objeto de nossa crítica em artigo publicado na revista Estudos Econômicos, da USP, em 2001 (Duayer, M., Medeiros, J. L. G. e Painceira, J. P..“A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica”).

Mostramos ali que o debate corrente em filosofia da ciência, em torno das contribuições de autores, como Kuhn, Lakatos, Popper, entre outros deixa patente que as ideias defendidas por Lisboa sobre ciência e explicação científica são simples e totalmente insustentáveis, anacrônicas.

Em seu primeiro artigo na Ilustríssima, de 14/02/2016, Lisboa e Gonçalves, saem em defesa da Economia como ciência diferenciando-a da literatura. Ao contrário da literatura, para a qual, segundo eles, bastam boas histórias, a ciência se distingue pelo “método”, definido pelos autores como “argumentos precisos” capazes de serem postos à prova por “testes empíricos”.

Voltamos ao problema do teste empírico na parte 2. Antes, contudo, é preciso chamar a atenção para a ligeireza com que Lisboa e Gonçalves subestimam a arte para inflar a (sua) ciência. Em sua opinião, a literatura dispensa o método; para ela bastaria uma boa história. Ainda bem que artistas e teóricos da arte não frequentam os debates filosóficos na Economia, pois certamente ficariam horrorizados com a ideia de que a arte não tem método e nem argumentos precisos.

E poderiam contrapor que, de fato, a literatura não é ciência. Mas decerto acrescentariam que, de forma análoga à da ciência, a literatura, como arte, como uma das artes, também é uma forma de apropriação mental da realidade. A seu modo, a literatura aborda os problemas humanos, individuais e sociais. Assim como a ciência, quando tem circulação social, a obra de arte é empiricamente plausível, pois integra a maneira de pensar das pessoas, como elas interpretam o mundo a sua volta, as suas relações recíprocas e, nessa medida, influi em seu comportamento prático.

Nesse particular, guardadas suas diferenças, na forma como figuram o mundo, arte e ciência social cumprem um papel social semelhante. Por um lado, se focaliza aspectos periféricos e superficiais da vida social, a arte contribui para reforçar a impressão de imutabilidade com que a própria realidade social se apresenta, seus valores e os respectivos interesses que fomenta. Com isso, alimenta o pragmatismo, o cinismo ou o simples desalento, desesperança. No melhor dos casos, gera a crença em soluções imaginárias, cuja irrealizabilidade é debitada na conta de problemas administrativos, políticos ou teóricos. Por outro lado, a arte pode também tocar nos problemas fundamentais da realidade social, dissolver sua aparência de perenidade e, assim, possibilitar à consciência social vislumbrar outras formas de sociabilidade, caso fique patente que tais problemas são de natureza estrutural, imanentes à ordem social.

De maneira análoga, a ciência pode investigar a realidade social sem truncar a sua intrínseca historicidade e o caráter igualmente histórico do papel dos sujeitos; ou pode se restringir a analisar a estrutura social existente e, desse modo, delimitar com sua autoridade o perímetro em que é lícita e razoável a ação do sujeito: o infinito aperfeiçoamento do capitalismo.

As artes e as ciências sociais, portanto, desempenham papel social semelhante se não vão além da realidade imediatamente dada. Quando nenhuma das duas se pergunta pelas causas efetivas dos problemas sociais, sua função se resume a oferecer soluções para os problemas que a sociedade põe para os sujeitos em conformidade com os termos e os meios por ela determinados. E não constitui nenhum paradoxo que as ciências sociais e as artes, quando assim procedem, são empiricamente plausíveis. Mas não custa recordar que o geocentrismo foi empiricamente plausível durante a maior parte da história da humanidade, embora absolutamente falso.

Na verdade, não é de se estranhar que em uma sociedade complexa, complexamente estruturada como a sociedade capitalista moderna, exista uma ciência, uma ciência econômica, dentre outras ciências sociais, que tenha como objetivo, como propósito resolver os problemas postos por essa forma de organização social. Claro, seria patentemente absurdo se essa forma de vida social que impõe a utilização da ciência, do aparato científico, em seu desenvolvimento não tivesse esse tipo de suporte. A sociedade funcionaria de determinada maneira e a ciência funcionaria em outro mundo, em outro universo conceitual. É evidente, por conseguinte, que nessa sociedade há um conjunto de ciências, não só a Economia, que tem por objetivo prover instrumentos para organizá-la, para solucionar os seus problemas intrínsecos, que, mesmo sendo insolúveis, posto que resultam da própria estrutura e funcionamento da sociedade, sempre podem ter mitigados seus efeitos humanos, sociais e ecológicos mais perversos.

Tais são a natureza e a função da ciência positiva, logo ciência socialmente necessária. A ciência positiva (ingênua e sinceramente, ou não) restringe-se a analisar a realidade social em sua manifestação imediata, seja porque subtrai da sociedade a sua historicidade, seja porque concebe o futuro como absoluta contingência. Por essa razão, é natural que o pensamento positivo considere ideológica – em seu jargão, não científica – qualquer crítica à ordem social existente. Acredita que ideologia, parafraseando Terry Eagleton, é como mau hálito, só quem tem são os outros. Para o pensamento positivo as contradições da ordem social constituem unicamente objetos que reclamam soluções, e a ciência positiva comparece trazendo tais soluções. Compreensivelmente, dentro da ordem existente.

Com essas considerações já é possível retomar as questões filosóficas, que abandonamos provisoriamente quando Lisboa e Gonçalves garantiam que a ciência, à distinção da literatura, se caracterizava pelo “método” e por “argumentos rigorosos” passíveis de confrontação com dados empíricos. Posição teórica que suscita as seguintes dúvidas: de um lado, como distinguir a validade empírica da ciência da validade empírica das outras formas de conhecimento da realidade, se todas as noções sobre o mundo, científicas, artísticas, religiosas e do senso comum que têm circulação social e, portanto, orientam a prática dos sujeitos são, por isso mesmo, plausíveis empiricamente? De outro lado, dificuldade ainda mais angustiante, como resolver o problema da quantidade – abstraindo da questão da qualidade – de testes empíricos suficientes para validar e/ou confirmar uma teoria se todas as teorias são subdeterminadas empiricamente? Como a resolução é impossível, resta uma única resposta: a teoria é aceita enquanto não for refutada por algum teste empírico (outra vez abstraindo do problema da qualidade), provocando a mudança de teoria ou de alguns de seus axiomas quando isso ocorrer. “Solução” que subentende a ideia absurda de que todas as teorias do passado eram falsas e destino idêntico aguarda as do presente e as do futuro. E cujo corolário, fácil de perceber,consiste no mais raso instrumentalismo, i.e., as teorias não têm de ser verdadeiras nem falsas;devem ser meramente úteis na prática.

Alternativa que nada mais faz do que reafirmar, de maneira oblíqua, que a eficácia prática não constitui critério suficiente para distinguir a ciência de outras práticas sociais igualmente eficazes: por exemplo, o conhecimento tácito dos costumes, dos hábitos. Coisa que, aliás, os debates em filosofia da ciência esclarecem em definitivo: não é possível distinguir a ciência em termos empíricos. Muito mais relevante do que isso, todavia, foi o consenso que esses debates acabaram por precipitar, a saber, que a ciência, qualquer ciência, jamais opera em um vácuo ontológico. O que significa afirmar que toda ciência está fundada em uma figuração do mundo, em uma ontologia, fonte de seus axiomas estruturais.

Tal concordância dissolve o rústico e persistente mito de que a ciência expressa o mundo tal como capturado por nosso aparato sensorial, que consiste em mera generalização dos “dados empíricos”. Ficção que presumia sujeitos originários agindo na prática desprovidos de conceitos, de pensamento conceitual, os quais iriam formando nos sucessivos encontros com as coisas do mundo. A refutação de tal lenda nos debates em filosofia da ciência resultou na admissão – hipertardia, é bom que se diga – de que a prática humano-social tem necessariamente por pressuposto sujeitos dotados de ideias, de conhecimentos, não importando o seu grau de desenvolvimento. Do que não foi complicado inferir que o empírico é interpretação, pois a realidade jamais pode ser apanhada sem a mediação da cultura, da linguagem, da ontologia, condições de toda prática. Por isso é um truísmo afirmar que em cada ciência o empírico é negócio privado dos sistemas teóricos em disputa. O empírico é interno às teorias científicas, visto que nada mais é do que o mundo apreendido ou interpretado com a mediação das noções ontológicas a elas subjacentes.

*Mario Duayer é professor aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Juan Pablo Painceira é analista do Banco Central do Brasil e PhD em Economia por SOAS/University of London

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