Brasil Debate

A luta de classes sai do armário

A precarização do emprego é capítulo marcante: afeta economicamente os trabalhadores e embute na ‘vítima’ a responsabilidade pelo eventual fracasso

Daqui a pouco, a carteira de trabalho não terá valor
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O chefe do governo espanhol, Mariano Rajoy, visitou o Brasil e  Michel Temer não perdeu a oportunidade de exibir suas perversões. Disse que as suas “reformas” eram inspiradas naquelas que Rajoy implantara na Espanha. Não podia ser mais claro. Ter o líder do PP como espelho é digno de um tolo.

Rajoy chegou ao governo nas eleições de novembro de 2011 e o único crescimento que administra é o da corrupção no partido. Desde essa época, rigorosamente, nenhum emprego fixo novo se criou na Espanha. Sim, houve alguma “reposição”dos empregos fixos antes existentes, mas os empregos novos, criados de janeiro de 2012 até hoje, foram sempre temporários, instáveis, precários e sem direitos. Simples assim, como mostra a estatística oficial espanhola. Chocantemente simples.

Bom, parece que é esse o modelito que Temer quer vestir na nova estação. Mas o modelo não para por aí. Vai além da qualidade do emprego e transborda nas consequências indiretas, mas muito sérias desses contratos temporários. O cientista político Jacob Hacker escreveu algo interessante a respeito desse desenho de sociedade. O estudo focaliza os Estados Unidos, mas sugere muita coisa sobre o Brasil.

Nas últimas décadas, afirma Hacker, os norte-americanos foram assolados por uma grande virada econômica e ideológica, uma mudança que tirava responsabilidades das corporações e do governo e jogava nas costas dos trabalhadores e suas famílias. Os trabalhadores arcam com a responsabilidade por suas aposentadorias e pensões, poupando e criando contas de previdência privadas. Arcam com os custos de saúde, comprando planos privados. Arcam com os custos de educação, pagando mensalidades. E arcam com todos os riscos do desemprego, guardando para os “dias de chuva”.

Para aumentar o problema, não se trata apenas de uma virada econômica. É uma virada ideológica, uma derrota para aqueles que batalham para ao menos  “civilizar” o capital, impondo alguns limites legais e contratuais. Todas as reformas – essas, sim, reformas – impostas ao capital durante o século XX tem sido atacadas e desmanteladas pelo capital nas últimas décadas, em todo canto do mundo. Como dizia um bilionário americano: “existe, sim, uma luta de classes – e a minha classe está ganhando”.

Mais uma vez recorremos ao livro de Hacker. Ele diz que passamos de um modo de ver o mundo para o outro. Sai de cena a ideia de que “estamos no mesmo barco, temos que compartilhar”. Entra em cena outra ideia: “cada um é responsável pela sua sina”.

A substituição de direitos sociais e serviços públicos por serviços comprados privadamente encorajam os americanos a “depender de si mesmos”, viver “de seus próprios recursos”, no limite do que “podem”. Responsabilidade individual, essa é a lição de moral. E esse cotidiano forçado pelas “reformas” muda pouco a pouco o modo como os americanos veem o mundo. Eles são cada vez menos “solidários” e se tornam cada vez mais individualistas… Mais republicanos, isto é, eleitores inclinados para o Partido Republicano, cuja mensagem central é essa, menos governo, mais empenho individual, cada um por si, mercado para tudo.

Não é só o emprego

Dentro da nova ofensiva capitalista, a precarização do emprego é apenas um capítulo desta, mas um capítulo marcante. Não apenas por afetar economicamente os trabalhadores, mas também por embutir na vítima a responsabilidade por seu eventual fracasso. Se você não acha emprego bom, é por não ter se esforçado para desenvolver sua “empregabilidade”.  E a nuvem de empregos precários também enfraquece a organização dos trabalhadores, o compartilhamento de valores, os hábitos e formas de vida e luta coletiva.

Nos Estados Unidos um emblema dessa mudança é este: nos anos 1960, o maior empregador era a General Motors, montadora em que o salário médio anual era de 29 mil dólares, com generosos benefícios indiretos (aposentadoria, férias, atendimento de saúde etc.). Hoje, o maior empregador é o Wal-Mart, com salários anuais de 17 mil e nenhum desses benefícios. Nos anos 1950 e 60, apenas 10% dos trabalhadores tinham emprego em tempo parcial. Nos anos 1990, essa taxa passou para 20% e um número cada vez maior tem contratos temporários. Os trabalhadores americanos, antes, tinham uma carreira (career). Passaram a ter um emprego (job) e cada vez mais são pagos para uma tarefa (task). Cada vez mais descartáveis, substituíveis e ameaçados.

É este o maravilhoso mundo novo que o modelito Temer pretende implantar. Não é apenas a destruição das leis trabalhistas. Vem junto a reforma da previdência, o enxugamento do seguro-desemprego, a destruição da saúde pública e um incentivo ainda maior ao plano privado, a cobrança de taxas e mensalidades nas escolas. E por aí vai. O inferno é o limite.

É uma ofensiva de classe. Parece velho, mas é atual: capital versus trabalho. É disso que se trata. Os capitalistas sabem disso, por isso querem que não saibamos. Devemos chamar tudo isso de “modernização”. Em breve, Minha Casa Minha Vida será substituído por Minha Senzala, Minha Sina. As novas antenas difundem as velhas mentiras. 

*Reginaldo Moraes é professor da Unicamp, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu) e colaborador da Fundação Perseu Abramo 

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